Guilherme Veiga
Desde que o gênero mockumentary caiu nas graças do público, a vertente buscou explorar os contextos mais improváveis, indo de uma empresa de papel da Filadélfia, passando por um grupo de vampiros em Staten Island e chegando na vida de um excêntrico repórter cazaque aterrissando nos Estados Unidos. Naturalmente vinculado à comédia, é de praxe que falsos-documentários abracem o nonsense e joguem fora toda a busca por credibilidade. Porém, é da premissa mais absurda que o produto é tratado de forma mais séria.
É assim que Marcel the Shell with Shoes On, nova aposta da A24, a primeira do estúdio envolvendo animação, se desenvolve. Misturando live action com stop-motion, a obra acompanha Marcel, uma adorável concha do mar antropomórfica com um olho e que veste sapatos, vivendo sua vida em um Airbnb com sua avó. Após um documentarista se hospedar nessa casa e descobrir os inquilinos, Marcel ganha fama repentina e usa dela para encontrar sua família. Apesar de extremamente descolado da realidade e tendo um pano de fundo que beira o infantil, o falso-documentário é extremamente maduro e consegue transformar a jornada da concha para um debate sobre os sentimentos humanos de forma muito singela.
Mesmo levando o selo da A24, que hoje é sinônimo de excelência, vale lembrar que a obra se trata de uma produção independente. Tanto que o longa foi concebido em 2021, circulando por festivais até ser adquirido pela produtora no começo de 2022 e só chegou ao circuito comercial, de forma muito limitada, na segunda metade do ano. Mas, assim como os outros produtos envolvendo a concha, a obra ganhou o mundo de forma orgânica, graças a sua fofura.
A produção cinematográfica é a convergência de duas origens. Inicialmente, o personagem surgiu a partir de uma voz que Jenny Slate (a Mona-Lisa Saperstein de Parks and Recreation) criou quando ela mantinha um relacionamento com o estreante diretor Dean Fleischer Camp. A voz tomou forma e, em 2010, um curta, com mesmo nome do filme, se tornou viral no YouTube. É aí que Marcel the Shell with Shoes On rompe a linha tênue entre falso-documentário e documentário, pois o longa, em uma coincidência metalinguística, usa do gênero para expandir uma história que, de certa forma, aconteceu.
A ideia de usar do gênero documental para jogar o telespectador na visão de Marcel (seja essa visão de ou do mundo) foi um artifício muito inteligente. Aliado ao design de produção de Liz Toonkel, o dia a dia da concha em um ambiente totalmente desproporcional ao seu tamanho nos remete ao sentimento de deslumbramento e nostalgia de Toy Story ou O Pequeno Stuart Little. E no momento em que o documentarista – que na obra também é o próprio diretor Dean Flescher Camp – se coloca a disposição para aprender a forma como o personagem enxerga a vida, ele evidencia que iremos entender a vida por aquela ótica.
Por isso, se engana quem pensa que, por ser uma animação, o filme seja necessariamente infantil. O longa possui uma base que pende para a melancolia e abrange uma gama vasta de assuntos através de seu texto, dividido entre Dean, Jenny e Nick Paley. É natural das animações usarem da aventura como fio condutor e a partir dela discutir temas, a exemplo do também indicado ao Oscar Red: Crescer é uma Fera, que usa da jornada de reverter uma maldição familiar para discorrer sobre a relação mãe e filha.
Aqui é ao contrário: a aventura está em segundo plano, sequer aparecendo realmente, fazendo com que o filme se contrua a partir de suas reflexões sobre relações familiares, aproximação e distanciamento, o passar do tempo, pertencimento e até mesmo a midiatização de personas. Mas, sem dúvidas a maior mensagem é sobre saber enxergar felicidades nas pequenas coisas, e isso é personificado no próprio Marcel: um ser tão pequeno e fofo, mas que carrega todos os sentimentos consigo.
Toda essa personificação é mérito de Jenny Slate. O fato do protagonista ser um personagem masculino e infantil exige um pouco mais de sua dubladora. Mas o que deixa tudo mais desafiador é que o design idealizado para a concha por Dean, tem pouquíssima expressão. Felizmente, Slate carrega todo o sentimentalismo da obra através de uma voz única e afetuosa, mesclando ingenuidade, curiosidade, esperança e conformismo, tornando o personagem-título uma das figuras mais adoráveis do Cinema no último ano. Vale destacar também o trabalho de Isabella Rossellini (Veludo Azul) interpretando a avó Connie e seu sotaque inconfundível que, segundo Marcel, acontece porque ela não é daqui – é da garagem.
O conjunto de acertos da produção convergiu em um sucesso natural, o que fez com que a obra figurasse no alto escalão da temporada, a colocando como candidata ao Oscar de Melhor Animação. Porém, apesar de sua qualidade inegável, ele chegou a ser dúvida na lista final. A Academia considera animação longa-metragem uma produção com mais que 70 minutos e que seja preenchida por pelo menos 75% do seu tempo com técnicas de animação.
Os 90 minutos de longa, sustentados majoritariamente por um único personagem em meio ao mundo real, causaram a tensão de talvez não se enquadrar nos moldes dos votantes. Por sorte, o pseudo-documentário integrou a categoria. A competição é bem acirrada; em um ano de não dominância de Disney e Pixar, ele disputa com o favorito Pinóquio por Guillermo del Toro e a surpresa Gato de Botas 2: O Último Desejo. Mas esse cenário é resultado de uma das melhores e mais diversa lista do gênero em anos.
Marcel the Shell with Shoes On é um poço de originalidade e mostrou ir muito mais além do que a que veio. O longa propositalmente deixa de lado a discussão sobre a existência daquela concha falante para transformá-la em uma reflexão sobre nossa própria existência. Dessa forma, mais do que antropomorfizar um objeto marinho, ele dá rosto para nossos sentimentos, personificados em alguém que, apesar de absurdo, é um retrato perfeito do que é viver à deriva desse oceano de sensações que é a vida.