Vitor Evangelista
A Liga da Justiça de Zack Snyder não foi feita para você. E nem para mim. Por mais que a liberação do filme tenha acontecido pelo apoio massivo dos fãs do diretor, as quatro horas e dois minutos de exibição não são destinadas a ninguém além de Autumn Snyder. A jovem filha do cineasta se suicidou enquanto os pais trabalhavam na primeira versão da aventura da Liga. A tragédia familiar afastou Zack do controle criativo dos personagens, logo em seguida veio a contratação do crápula Joss Whedon e a finalização do longa de 2017 naquele misto de martírio e bugiganga defeituosa.
Mas disso todos já sabem. O que não é tão conhecido é o senso artístico de Zack Snyder. O visionário abriu mão do salário como diretor para que pudesse remontar a sua própria versão da Liga, propagada como o Snyder Cut. Era o mistério do século, as horas e horas de filmagens não aproveitadas, as prévias que o realizador postava nas redes sociais e, claro, as manchas que Joss Whedon deixou na obra. Seja reescrevendo (onde ganhou os créditos quatro anos atrás) sequências inteiras, seja diminuindo a Mulher Maravilha, a mão pecaminosa do ex-Marvel fez o que pôde para destroçar a visão áurea e por vezes tediosa que Snyder moldou para a DC nos cinemas.
O filme de 2017, massacrado por qualquer pessoa com bom senso, era demasiadamente ruim, engraçado fora de hora e corrido demais. Nada ornava e nada parecia ser digno da Liga da Justiça, a maior equipe de super-heróis que já existiu. Ray Fisher, intérprete do Ciborgue, veio à tona com acusações de racismo que sofreu no processo da Liga de Whedon. O efeito é notável no desenrolar do filme, que renega as ações de Stone e joga o robô para escanteio. Tudo piorou quando foi revelado que Whedon, abatido pelo resultado aquém de seu Era de Ultron, constantemente trocava as bolas no set e tratava Diana (Gal Gadot) por Natasha (a Viúva Negra da Marvel). O que também é escrachado no longa, que rebaixa a Amazona ao corpo e constantemente a desmoraliza.
Mas esse diabo foi exorcizado. Joss Whedon caiu no ostracismo criativo de Hollywood. O descaso com a Liga da Justiça de 2017 foi fator importante para enterrá-lo, em conjunto das várias denúncias de abuso por parte de empregados antigos dele. A Liga da Justiça de Zack Snyder não tem o poder de apagar o filme anterior, mas, com certeza, alivia o peso que tanto o diretor quanto os fãs devotos carregavam de ter de aturar algo tão apático quanto a versão que chegou aos cinemas. O Snyder Cut não refilmou nada e só acrescentou diárias para finalizar o Epílogo. As cenas foram todas captadas na época e, por conta disso, a história não muda muito. O fator predominante do sucesso de agora é o tom do épico.
São quatro horas divididas em 6 partes e 1 epílogo. Podendo ser encarado como uma minissérie, o filme é tão carregado de tensão e batalhas que a falta de ganchos entre os capítulos não deixa o todo sem fôlego. O roteiro de Chris Terrio, parceiro de longa data do diretor, não poupa detalhes na hora de introduzir e motivar as dezenas de rostos que nos agraciam no Snyder Cut. É uma verdadeira reunião do estrelado elenco da DC, e mesmo as pequenas cameos se justificam como peças pequeninas da espalhafatosa visão de Snyder. Algo já provado à exaustão, sua incapacidade de contar histórias em pouco tempo vira superpoder nesse caso, munido do esquema de lançamento em streaming na HBO Max e da duração ridícula, que extrapola qualquer noção de marketing e Cinema.
A abertura com a ação das Amazonas escreve a carta de amor que Zack Snyder assina para com as personagens. Suas inspirações mitológicas ganham vida e forma, espreguiçando os conceitos que o diretor teimou a adicionar na versão comercial de Batman v Superman, e também nos moldes do primeiro Mulher Maravilha. A ponte para essa Liga é justamente o desfecho de A Origem da Justiça. O Super-Homem, morrendo, grita para o mundo todo ouvir, acordando assim as três Caixas Maternas. Snyder justifica suas ideias na concepção da ausência de um sonho. O vácuo da Esperança com S é o convite do caos para a Terra. A câmera lenta vira regra e o tom de aventura não modula diferenciações suficientes para ser chamado de autoral demais, mas o pontapé de Don’t Count on It, Batman, título do primeiro capítulo, é um abraço caloroso de alguém que aguardamos muito para conhecer.
O segundo capítulo, A Era dos Heróis, ainda soa como um longo prólogo, distribuindo o baralho de ideias do diretor. Sobram cenas que enriquecem sequências utilizadas em 2017, mas, dessa vez, os detalhes se justificam. O Snyder Cut, antes de tomar a proporção de agora, era um filme de evolução, plantando sementes a serem germinadas, como a gravidez de Lois Lane (Amy Adams) e o enlace de dois casais super-heróicos. Todavia, essa versão natimorta das ideias de Snyder se mostra mais como uma singela conclusão. A exemplo da sequência histórica dos povos unidos contra Darkseid, onde Snyder filma a Tropa dos Lanternas Verdes com timidez.
Se fosse o caso desse filme continuar o Universo da DC, a vibe seria outra. Iris West e o Flash de Ezra Miller terão a chance de brilhar no futuro longa do Velocista Escarlate, mas dificilmente seguirão à risca as deixas marcadas aqui. Podemos deduzir isso por conta da relação amistosa e selvagem do Aquaman (Jason Momoa, apagado) e de Mera (Amber Heard, vibrante). A dupla de Atlantis se comporta de modo arisco, indo na contramão da pegada que James Wan injetou em 2018. O que, com certeza, é compreensível, já que o monocromático mundo cinzento de Zack Snyder não decolou comercialmente ou fora do nicho de seus fãs apaixonados.
Por maior que o filme seja, ainda é difícil criar laços com o turbilhão de personagens apresentados ‘pela primeira vez’ aqui. A interpretação de Ray Fisher na pele e maquinaria do Ciborgue demora a engatar o vínculo emocional necessário para com quem assiste, mas ele se sai bem. Renegado na versão do cinema, o jovem herói é o coração do Snyder Cut. O mesmo vale para o Flash, que virou uma criança no filme de 2017, mas aos olhos de Snyder é um adulto com senso de responsabilidade (e não cai de cara nos peitos da Diana, olha só a melhora). A energia de Gal Gadot nesse filme se distancia da interpretação de Patty Jenkins, dando mais material ao lado guerreira da Amazona, suas melhores cenas são as de quebra-pau.
O texto da Liga da Justiça de Zack Snyder é sedento para nos contar o máximo que pode sobre esses personagens e sua encarnação atual. As quatro horas não fazem milagre. As ideias dessa Liga seriam melhor aproveitadas se desmembradas e divididas em uma porção de filmes de origem, ao invés de fazer um sucão concentrado e virá-lo na goela do espectador. Beloved Mother, Beloved Son, o capítulo 3, continua ecoando o luto por Superman (Henry Cavill mais faz caras e bocas do que atua), a culpa do Batman (Ben Affleck, na melhor encarnação do personagem) e os próximos passos dessa Liga da Justiça novinha em folha, brindados pela batida frenética de Junkie XL, que por si só serve como artifício de distinção do passado.
Da metade para o final, o filme é mais descarado nos momentos de elucidar as ideias próprias de Zack Snyder que acabaram apagadas na versão do cinema. O Caçador de Marte dá as caras, a real motivação para ressuscitarem o Superman também. Essencialmente, o Snyder Cut conta a mesma história que a Liga de Joss Whedon, mas com a pompa para fazer valer os mais inusitados conceitos, o tom megalomaníaco e épico que o diretor insiste em chamar de visionário, e, claro, a versão repaginada é muito mais amorosa e digna da Liga da Justiça.
É um filme bom? Você pode se perguntar, mas não existe resposta objetiva. Se formos investigar os “defeitos” (entre grande aspas) da DC nas telonas, a principal culpada pode ter sido a Warner, que vivia à flor da pele e na ânsia de rivalizar em números com a Marvel, mas isso nunca aconteceria. Zack Snyder e Kevin Feige, o líder do MCU, não compartilham em nada suas visões de império e construção de sequências e mais sequências. Esse encerramento que Snyder dá à sua visão ainda carece de coesão e ordem, mas não havia maneira de ‘consertar’ e ajustar sua criação à essa altura, ela simplesmente foi concebida assim.
All the King’s Horses, o quinto capítulo, é o jogo de xadrez chegando ao clímax. A Liga da Justiça soa como a Liga da Justiça merecia soar nessa primeira aventura e reunião da equipe. Ezra Miller evoca um senso de humor cabível com o Flash daqui, e o Barry Allen se assemelha muito à construção de timing cômico de outro Barry, o de Bill Hader na HBO. O Snyder Cut elimina a trama da família europeia em fuga, mas a batalha final com o Lobo da Estepe continua frustrante e simples demais. O vilão sofre uma bela mudança no visual, e sua armadura metálica dá um destaque cromático e mitológico para a figura, mesmo que a personalidade do ator Ciarán Hinds nunca decole para além do inexpressivo.
O último capítulo é a essência do filme de Zack Snyder. Os heróis brincando de bobinho com o Lobo da Estepe enquanto o Superman, vestido de preto, é claro, desce a mão no vilão. Tudo dá errado, mas depois tudo dá certo, graças ao Flash, que tem função narrativa ao invés de só correr e tropeçar. O Snyder Cut ainda molha os pés na possibilidade de Darkseid se movimentar em cena, mas a água parecia estar muito gelada e a ideia logo é deixada de lado. O que é uma pena, considerando o escopo de uma trama com esse tipo de inimigo e seus aliados DeSaad e Vovó Bondade, e todas as consequências e portas abertas no Universo da DC. O que termina num tom positivo, melhora no Epílogo.
Sem dúvidas, o mundo alternativo dos pesadelos de Batman seria a melhor aventura que Zack Snyder poderia proporcionar, e, mesmo assim, o filme que mais gostaríamos de ver nunca será feito. Tem de tudo naqueles breves minutos: o Exterminador como aliado, Mera com sangue nos olhos, um traje interessantíssimo do Flash e a melhor (e mais curta) encarnação de Jared Leto como o Palhaço do Crime. O Coringa Messias cospe com propriedade e sem vergonha toda a visão áurea de Snyder para a DC: nada de seres normais, aqui lidamos com deuses. E, descendo do Olimpo, o Superman do Mal surge esplêndido e raivoso, a câmera corta para o preto e “Para Autumn” ilumina a tela escura.
Ele conseguiu. Zack Snyder realizou o sonho de finalizar sua versão da Liga, dedicou a obra ao anjo que Autumn se tornou e eternizou a filha no panteão dos super seres. Nada importa além disso, nenhuma recepção, nota da crítica ou texto de 4 páginas no Google Docs. O Snyder Cut não foi feito para ninguém além da jovem, feito com carinho, zelo e o maior amor do mundo pelo pai. Feito com justiça.