Raquel Dutra
A morte deve ser o aspecto mais globalizado da experiência humana no planeta Terra. Universalmente particular, a única certeza da vida é sujeita à forma como nos estabelecemos no mundo antes dela, originando questões culturais, familiares, sociais, e também econômicas. O paradoxo se intensifica quando ela chega: seja no Oriente ou no Ocidente, no hemisfério norte ou no sul, todos vivenciam uma mesma situação à sua própria maneira. E essa é a única conclusão de Lidando com a Morte, um dos primeiros documentários exibidos nas cabines de imprensa da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
O filme holandês elege como personagem principal a sociedade multicultural de Amsterdã de um lado, e uma agente funerária de outro. A primeira é composta por grupos hindus, muçulmanos e ganeses, e a segunda é Anita Van Loon, funcionária responsável por um empreendimento ambicioso da empresa em que trabalha, que almeja construir o primeiro centro funerário multicultural da Holanda. A partir destes elementos, Dealing with Death acompanha a jornada longa que suas figuras principais desbravaram ao longo de 7 anos em busca da conciliação entre a população de uma cidade de diversidade efervescente e o interesse financeiro dos representantes de um capitalismo uniformizador.
A direção de Paul Sin Nam Rigter e a montagem de Noud Holtman entregam o contraste da história desde o início. Aos primeiros minutos de Lidando com a Morte, o documentário acompanha a preparação para um rito religioso de luto, realizado por pessoas que estão em estado profundo de lamentação. Então, de forma abrupta, o filme nos coloca dentro da funerária, onde Anita recepciona a câmera de forma solícita e gentil.
Ali, aliás, é onde o filme vai permanecer por um tempo, acompanhando o dia a dia de Anita no planejamento do novo projeto – e ainda não é do nosso conhecimento, mas ele tem tudo a ver com a cena que toma o prelúdio de Lidando com a Morte. Não demora para conhecermos parte do processo e entendermos assim quais são os objetivos de cada instância retratada no filme, já que alguns minutos depois de percorrer a empresa atrás da funcionária, somos colocados junto de Van Loon num encontro com um grupo de representantes religiosos e demais membros da empresa para discutir sobre seus processos funerários.
A roda de conversa composta por empresários brancos e representantes religiosos não-brancos faz com que os próximos 74 minutos pareçam óbvios para todos, menos para Anita. A funcionária se envolve com a ideia romântica do projeto de abarcar a diversidade cultural da cidade e com o processo de pesquisa para a sua realização, que inclui visitas amistosas aos centros religiosos para entender como cada cultura se comporta diante da morte e compreender suas necessidades no que diz respeito a viver este momento como imigrantes em Amsterdã.
Entre as negociações do empreendimento e a pesquisa de campo de Anita, a narrativa de Lidando com a Morte não encontra nenhuma constância. O único fio parece ser a morte, que por sua vez, é sempre é um assunto presente mas nunca o ponto principal. Essa construção cria um clima de espera pelo momento em que a razão de tudo ali irá assumir o protagonismo do filme. E quando ele vem, trabalha apenas para reforçar as diferenças que existem entre os aspectos abordados pelo documentário, que se destacam no paralelo síncrono que o filme constrói entre um rito fúnebre do povo ganês local e o velório do próprio pai de Anita.
Primeiro, Lidando com a Morte se coloca na companhia de quem sente o luto e processa a morte com tudo o que tem direito, capturando desabafos doloridos de quem acredita que o ente querido está em um lugar melhor, mas que também entende como ninguém a dimensão da sua ausência. Compreendendo a profundidade do rito e seus significados culturais e simbólicos, o documentário também sabe registrar os ritos que surgem a partir da morte como símbolos de florescimento cultural em solo estrangeiro, de manutenção das raízes longe de casa e de conexão com seus similares.
Depois, chega o momento de Anita, de fato, lidar com a morte. E este também é o momento em que o documentário cria seu valor em significado. O pai da protagonista do filme se foi, depois que ela se envolve com os processos fúnebres das outras culturas e planeja de forma descomplicada o dia com o próprio em vida. Enquanto ela reflete sobre o que o luto do pai significou para ela, a personagem também enfrenta outro fim: o do projeto onde ela depositou tanta dedicação.
O final é como o já calculado: a empresa não enxergava o mesmo valor no centro funerário multicultural e muito menos conservava apreço pelo trabalho de Anita, que ia na direção oposta à que os interesses financeiros apontavam. Na inauguração do projeto que levou sete anos e muito envolvimento emocional para ser desenvolvido, ela não está lá. Assim é que as inconstâncias de Lidando com a Morte se entrelaçam no final ao mostrar que não existe conciliação em diferentes interesses. O sistema econômico que rege quase todo o mundo não consegue lidar com as particularidades de cada um, e assim, a máquina imparável do capitalismo só pode continuar se for de maneira uniforme. Essa deve ser a face mais universal da morte. E temos de lidar com ela.