A abóbora antes da meia-noite de Harry & Meghan

 Fotografia em preto e branco de príncipe Harry e Meghan Markle. Na imagem, o casal comemora o casamento enquanto a câmera captura os dois sentados em uma escadaria. Meghan, uma mulher negra de cabelos e olhos escuros, veste um longo vestido de noiva branco de mangas compridas. Ela também usa uma tiara de cristais e carrega um buquê de flores nas mãos. Harry, um homem branco de cabelos e olhos claros, veste um traje de gala militar com condecorações, o uniforme é preto e de mangas compridas. Ambos sorriem.
Anunciado como um evento global pela Netflix, Harry & Meghan alcançou o Top 10 em 85 países (Foto: Alexi Lubomirski)

Nathalia Tetzner

Fugir da madrasta má por um princípe, encontrar a fada madrinha, perder o sapatinho de cristal e assistir a carruagem voltar a ser uma mera abóbora. A história da princesa Cinderela é um clássico que tem início, meio e um final popular entre os seres que habitam a Terra, mas amam sonhar com as estrelas: o famoso ‘felizes para sempre’. Em paralelo com a vida real, os contos de fada são construções fictícias almejadas por uma mídia cada vez mais idealista, sendo o meio responsável pela narrativa ilusionista elaborada em torno da monarquia britânica. Na série documental Harry & Meghan, a diretora Liz Garbus ajuda o duque e a duquesa de Sussex a derrubar as cortinas da fantasia criada sobre eles e a instituição.

Se nos livros a protagonista loira e de olhos azuis enfrentou obstáculos em sua caminhada romântica, Meghan Markle precisou sacrificar a sua liberdade pelo casamento com príncipe Harry e teve a sua imaginação transformada em abóbora antes mesmo dos sinos da meia-noite tocarem Afinal, Markle nunca se encaixou no padrão aristocrata da família real do Reino Unido. Mulher negra, atriz e ativista, ela foi inicialmente vista como uma oportunidade para os diversos povos da Commonwealth se sentirem representados, porém, a sua luz logo se tornou uma ameaça aos velhos costumes. Em uma jogada de mestre, o casal escolheu registrar a sua versão dos fatos por meio do streaming Netflix, uma plataforma ainda maior que os 56 países membros da organização intergovernamental.

Fotografia em preto e branco da cerimônia de casamento de príncipe Harry e Meghan Markle. Da direita para a esquerda na imagem, a mãe de Meghan, Doria Ragland, aparece em evidência com uma das mãos para o alto. Em seguida, Camilla Parker Bowles e príncipe William compõem a imagem. Doria, uma mulher negra de cabelos e olhos escuros, veste blazer e acessórios em tons claros. A paleta de cores foi escolhida também por Camilla, uma mulher branca de cabelos e olhos claros. William, um homem branco de olhos claros, veste um traje de gala militar preto. O cenário é composto por convidados que assistem Elton John cantar.
29,2 milhões de pessoas assistiram a cerimônia de casamento entre Harry e Meghan ao redor do mundo (Foto: Netflix)

Harry & Meghan é consequência da enorme bola de neve formada ao longo da estadia nos castelos da realeza e que, agora, finalmente está engolindo tudo e todos por onde passa. O estopim para a produção foi a entrevista para a apresentadora de televisão estadunidense Oprah Winfrey, concedida um ano após renunciarem aos cargos da coroa e na qual fazem uma sequência de revelações, incluindo a denúncia de racismo. Pela primeira vez, o casal narrou com franqueza o ambiente miserável escondido dentro dos luxuosos portões guardados por soldados, conseguindo deixar no público a ânsia por bis. Lançado no mesmo ano do falecimento da célebre Rainha Elizabeth II, o seriado não somente questiona toda a estrutura da instituição, como também marca a inversão da caça às bruxas.

Vilanizados pelas manchetes sensacionalistas, os pombinhos armam uma arapuca para os tablóides britânicos profundamente ligados aos escritórios dos membros da monarquia. Porém, do mesmo modo que a carruagem da lua de mel se desfez rapidamente, a falta de sensibilidade da montagem – tarefa destinada a 7 profissionais – em saber o momento exato para encaixar o tema, acaba mais satisfazendo e gerando conteúdo polêmico para a mídia do que qualquer outra coisa. O documentário tropeça em um certo dilema da exposição e, com isso, a legitimidade da retomada da narrativa pelos que tiveram as suas vidas pessoais exploradas perde o sentido quando a trama se desloca abruptamente para a propaganda das iniciativas de cunho social do casal. 

Fotografia em preto e branco do atual rei Charles III, da princesa Diana e do segundo filho do casal, o príncipe Harry. Da esquerda para a direita na imagem, Charles olha para o lado oposto de onde Diana está carregando o filho. O rei, um homem branco de cabelos e olhos claros, veste uma camiseta de botões e mangas curtas em tons claros. Diana, uma mulher branca de cabelos e olhos claros, veste um vestido sem mangas listrado. Em seu colo, Harry veste uma camisa também listrada de mangas curtas e uma bermuda branca. Ao fundo, o cenário é uma residência aconchegante.
Lady Di tem o seu nome e legado valorizados durante a série documental e a autobiografia de Harry, O Que Sobra (Foto: Kent Gavin)

Em relação ao magnetismo que atrai a compaixão de quem assiste a série da Netflix, o ditado popular explica: “filho de peixe, peixinho é”. Harry traz de volta para as telas um vislumbre do olhar sensível de sua mãe e o debate sobre a atuação nociva dos paparazzi ganha força, dessa vez, com Markle como vítima dos flashes. Através do fator histórico do falecimento de Diana e de sua própria juventude estampada nas capas de jornais, ele injeta o teor de drama necessário para retratar a realidade. Os diversos momentos em que Lady Di é citada não ocorrem em vão: a obra busca unir as melhores comparações entre ela e Meghan para arrancar algumas lágrimas, sendo provavelmente o último ato coerente do casal antes de exagerarem na dose. 

Dividido em 6 episódios, Harry & Meghan parece não saber o que deseja ser no começo e, depois, encontra uma solução apenas para se perder novamente. Liz Garbus, conhecida pelos documentários indicados ao Oscar The Farm: Angola, USA (1998) e What Happened, Miss Simone (2015), experimenta de tudo na direção a fim de organizar filmagens caseiras e fotografias exclusivas. Seguindo uma ordem cronológica, ela parte do início do romance até os nascimentos dos filhos, Archie e Lilibet, mas, em meio a todo o caos, a vulnerabilidade de Meghan frente ao discurso de ódio e as incontáveis ameaças direcionadas pelas redes sociais caracteriza a cena de destaque da produção, encarregada de completar a linha de raciocínio da trama que converge para esse ponto de ruptura.

Fotografia em preto e branco de príncipe Harry e Meghan Markle. Na imagem, o casal viaja pelo continente africano enquanto a câmera captura os dois sentados em um veículo de safári. Meghan, uma mulher negra de cabelos e olhos escuros, veste uma manta estampada. Ela também utiliza um chapéu branco e óculos de sol escuro. Harry, um homem branco de cabelos e olhos claros, veste uma camiseta de mangas curtas e uma bermuda em tons escuros. Ambos sorriem para a lente das câmeras.
Harry e Meghan atualmente se dedicam a fundação Archewell, por onde realizam produções para os streamings (Foto: Netflix)

Eu queria compartilhar uma história que eu escrevi sobre o homem que eu amo e como nós nos conhecemos. Vamos chamar isso de contos de fada moderno”. Do mesmo modo que a Cinderela enfrentou obstáculos peculiares que, se não escritos com tamanha criatividade ninguém acreditaria, as revelações apresentadas pelos duque e duquesa de Sussex são, no mínimo, chocantes. Brigas entre irmãos, conflitos na véspera do casamento e todas as outras consequências da saída da realeza são atos tão dignos de um conto de fadas moderno quanto o ‘felizes para sempre’. Harry & Meghan irrita quem deseja a perfeição cinematográfica, desperta a fúria dos tablóides e entrega o que o seu público-alvo pede: as razões pelas quais uma carruagem luxuosa se transformou em uma simples abóbora.

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