Ghost in the Shell: Bonito, mas sem alma

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Matheus Fernandes

As canônicas adaptações do teatro e da literatura ao cinema já foram consideradas, injustamente, uma afronta à pureza do cinema como forma de arte, situação explanada no artigo “Por um cinema impuro – Defesa da adaptação”, de André Bazin, onde o teórico aborda essa relação entre linguagens como essencial para o progresso do cinema. Atualmente, as adaptações de quadrinhos dominam o cinema mainstream, fortalecendo as duas indústrias, apesar da divisão na crítica. Ainda assim, em busca de novas histórias e públicos, já planejando o fim da era dos super heróis, Hollywood se aproxima cada vez mais de outras fontes, especificamente os videogames e o universo japonês dos animes e mangás.

O primeiro alvo dessa empreitada americana de transpor animações japonesas, que nos próximos meses verá versões de Alita: Battle Angel, produzida por James Cameron (Titanic, Avatar), e de Death Note, produzida pelo mega conglomerado Netflix, é a franquia Ghost in the Shell, uma das mais aclamadas do gênero.

Still de Ghost In the Shell (1995)
Still de Ghost In the Shell (1995)

Clássico do cyberpunk dirigido por Mamoru Oshii a partir do mangá de Masamune Shirow, o filme original de 1995 traz a história de Major Kusanagi, agente de segurança ciborgue que combate a criminalidade em um Japão futurístico, onde humanos tem partes cibernéticas e conectam sua consciência à internet. Ao mesmo tempo, a personagem lida com questões filosóficas, como identidade e seu inerente dualismo entre corpo e mente, orgânico e sintético.

Com seus números verdes sobre fundo preto e conexões digitais através da nuca, a obra se tornou referência direta para Matrix, Avatar e AI: Inteligência Artificial, entre outros. O próprio Steven Spielberg era o detentor dos direitos para a adaptação.

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Uma das cenas mais clássicas do filme original, o quarto de Major no começo de um dia

Na versão de 2017, dirigida pelo questionável Rupert Sanders (Branca de Neve e o Caçador), o maior acerto é nos impressionantes visuais, assim como no cult Speed Racer dos irmãos Wachowski, outro experimento hollywoodiano. Cenas marcantes do anime, como o nascimento de Major ou a vista da janela enquanto a personagem acorda ganham versões livres das limitações tecnológicas do original, graças a um exemplar trabalho combinando efeitos práticos e computação gráfica.

Do alto, na competente fotografia de Jess Hall, a cidade do filme oferece o visual massivo de Blade Runner, com dezenas de hologramas de ar aceleracionista, como os de Akira. Ao nível do chão, concreto, cabos e a opressão dos gigantescos blocos de prédios de Hong Kong. Apesar de derivativo, Ghost in the Shell acerta completamente na ambientação estética.

Cyberpunk próximo: os hologramas das ruas do filme não diferem muito de experiências reais com realidade aumentada.
Cyberpunk próximo: os hologramas das ruas do filme não diferem muito de experiências reais com realidade aumentada.

O casting se mostra acertado, com Juliette Binoche (Trilogia das Cores), Michael Pitt (The Sopranos) e o extraordinário Takeshi Kitano, atuando em japonês, segurando o nível em boa parte das cenas. Scarlett Johansson, escalada como a personagem principal do longa sob (justas) acusações de whitewashing, mostra mais uma vez sua capacidade para ficção científica, exibida recentemente em Her, Lucy e o subapreciado Under the Skin.

É no roteiro, assinado entre outros por Ehren Kruger, autor de boa parte da saga Transformers, que o filme começa a se perder. A história segue basicamente o anime de 1995, com uma troca de vilões, com Kuze, da série Stand Alone Complex 2nd Gig, no papel do abstrato Puppet Master. Nomes diferentes para a mesma função.

A falta de equilíbrio é sentida. O apelo de GITS sempre foi sobre o sensível balanço dos combates com os longos diálogos existenciais. É previsível um número maior de cenas de ação em um remake direcionado ao grande público, porém, ao remover boa parte dos questionamentos filosóficos, o filme se torna vazio, com grandes sequências preenchidas somente pelo genérico score de Clint Mansell (Requiem for a Dream), que em nada se aproxima dos corais e tambores de Taiko que dão clima a versão noventista.

A pior ofensa porém é na mudança de foco da protagonista, Major. A busca por compreender o que forma o fantasma de cada um se transforma no clássico trope de recuperar a memória perdida, indo assim de um questionamento universal para uma empreitada pessoal. Ghost in the Shell se comporta mais como Wolverine ou Identidade Bourne do que como o inexperado indie Ex-Machina e Under the Skin, onde a própria ScarJo interpreta uma criatura alienígena tentando compreender a espécie humana.

Há incontáveis ingredientes que formam o corpo e a mente humana, como todos os componentes que me tornam um indivíduo com minha própria personalidade. Claro, eu tenho um rosto e uma voz para me distinguir dos outros, mas meus pensamentos e memórias pertencem unicamente a mim, e eu carrego uma noção de meu próprio destino. Cada uma dessas coisas são apenas uma pequena parte disso.  Eu coleto informação para usar de minha própria maneira. Tudo isso se une para criar uma mistura que me forma e eleva minha consciência. Me sinto confinada, somente livre para me expandir dentro de limites.  – Major Motoko Kusanagi, no filme de 1995.

Em uma tentativa de humanizar a personagem e responder (porcamente) às acusações de whitewashing, essa busca leva Major a sua mãe original, asiática, e a um relacionamento, pensamento improvável para sua gélida versão animada de características agender. Em vez da transcendência da humanidade pela tecnologia, com todas as problemáticas envolvidas, como no anime e em Her, para ficar nos filmes recentes, aqui o maior trunfo é a fabulaica exaltação dos valores humanos como resposta ao avanço científico.

Ghost in the Shell, como os ciborgues de seu universo, tem um exterior belo e tecnológico, digno de elogios, mas tem problemas de identidade em seu vazio interior. O filme passa longe de desastres como Avatar e Dragonball Evolution, mas mesmo não consegue capturar a essência do original, nos termos do já citado artigo de Bazin, por sua incapacidade de compreender as problemáticas originais, longes da ação vazia e genérica e seus clichês de roteiro apresentados aqui.

Scarlett Johansson como a ciborgue Major Kusanagi
Scarlett Johansson como a ciborgue Major Kusanagi

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