Vitor Evangelista
Não, Dor e Glória (Dolor y Gloria, no original) não é um filme autobiográfico. Seu realizador, o notório Pedro Almodóvar, prefere o termo autoficção. Caminhando em território poético, o cineasta conta uma história íntima sobre amores, perdas e sobre o passado de um diretor de cinema, brilhantemente vivido por Antonio Banderas.
Dor e Glória segue a rotina de Salvador Mallo, cineasta afastado do ramo e que sofre de diversos problemas médicos. Suas costas doem, um zumbido inferniza sua audição e as enxaquecas não o deixam em paz. Antonio Banderas constrói, camada por camada, e sem cair em maneirismos baratos, um homem atormentado. O aparato físico pesa, mas é o lado emocional que realmente castiga o protagonista.
Pedro Almodóvar buscou no próprio passado muitos dos atributos que entregou nas mãos de Banderas. A cirurgia na coluna, o figurino exuberante e o endereço de sua casa são peças pequenas comparadas a carga dramática que o diretor real escreve para seu diretor fictício. E Banderas, talentoso que só, não a toa venceu Cannes como Melhor Ator.
Dor e Glória é um filme complacente. Na jornada de Salvador, o passado é a estrada. Chegado o ponto de estagnação, tanto na carreira fílmica quanto na vida cotidiana, o homem reflete sobre suas decisões, seus fantasmas e, principalmente, sobre seu cinema. E é nesse fator que Almodóvar brilha.
O espanhol brinca com experiências e vivências anteriores, filma seu protagonista silencioso e pensativo, colore seus ambientes com tons fortes e quentes. Tudo isso contraposto a frieza involuntária de Salvador. E assim, pouco a pouco, o filme posiciona coadjuvantes para extraírem do cineasta o combustível que o guiará para frente.
O filme apresenta um caráter episódico mas, se tratando do tema e do realizador, quaisquer desvios narrativos ou coincidências rítmicas se tornam poesia em tela. O cinema de Pedro Almodóvar alcança um nível de verdade e de solenidade que não há necessidade alguma de provação ou reafirmação. Ele apenas é.
As figuras periféricas a Salvador aglutinam sentimentos e reações, buscam frestas para cavar o legado e a aura do artista. A priori, quem merece destaque é a brilhante Penélope Cruz, intérprete de Jacinta, mãe de Banderas, em flashbacks. Astuta, ríspida e com um olhar afetuoso, a atriz cria uma ponte entre o Salvador de ontem e o de hoje.
Junto a ela, interpretando a mãe idosa, Julieta Serrano. A atriz veterana carrega uma benignidade afogada. Suas conversas com Banderas, ora improvisadas pelos atores, transmitem verdade e perdão. Em Dor e Glória sobra até espaço para uma pontinha da cantora Rosalía, vivendo uma lavadora da vila.
Todavia, as melhores parcelas do filme são as divididas entre Antonio Banderas e Leonardo Sbaraglia. Interpretando Federico, o ator representa um ideal de amor inalcançável e insuperável para o personagem de Salvador. Além, é claro, de deliciar o espectador com uma paixão tímida, cálida.
Dor e Glória é otimista. Mesmo quando o filme constata que o louro da vida já pode ter se esvaído, o roteiro de Almodóvar sorri para seu protagonista. Um sorriso que diz muito, novas memórias podem ser construídas, novos momentos moldados. O cinema é imperativo nesse posicionamento.
A arte de Salvador (e também a de Almodóvar) é ser vivo, em constante expansão. Os caminhos que a poesia alastra podem ser fundamentais para um novo ponto de partida. E, aqui, mesmo com mais dor do que glória, o diretor consegue fundamentar sua máxima.
Parabéns…..