Bárbara Alcântara
“Today. Everything sucks today.” Milo (vocal), Bill (bateria), Stephen (guitarra) e Karl (baixo) entraram no palco no sábado (03) em São Paulo tocando esse som. Ao contrário do que dizia a letra da música, nada estava sendo um saco naquele dia. Para confirmar isso, era só ver a animação estampada na carinha de cada uma das pessoas lá no Tropical Butantã. Todo mundo cantando, gritando e chorando, emocionados, ao som do agressivo porém melódico e dançante hardcore punk da banda. Estavam todos nitidamente desacreditados de que, enfim, realizaram um sonho que tinha sido adiado por 20 anos: ver o Descendents ao vivo.
Mal começaram a ser vendidos, os ingressos já se esgotaram. Precisaram mudar o lugar do evento para caber mais gente mas, no final, só aumentar o espaço não foi o suficiente. Tiveram que abrir mais uma data para acalmar os ânimos de quem tinha ficado de fora (e enchia a caixa de mensagens da organização). Ninguém queria perder esse momento emblemático na vida de quem passou a adolescência desejando “nunca crescer” e nem ser “estereotipado e classificado em uma casa do subúrbio”.
O Descendents surgiu no final dos anos 70 e início dos 80 com uma estética visual e posturas muito destoantes das bandas punks tradicionais da época. Eles tocavam o que depois ficou conhecido como pop punk. O som: rápido e agressivo. As letras: típicos desabafos de adolescente. O que faziam de igual era falar da sua insatisfação com o mundo, das recorrentes desilusões amorosas e também de coisas corriqueiras — no caso deles, o incondicional amor à comida e ao café (eles amam muito fast food e café). De diferente eles tinham a “carinha de nerd” e, principalmente, a não-apologia às drogas — apesar de nunca se admitirem straight edges.
Até 2015, tinham 6 álbuns gravados em estúdio (que o vocalista elencou em uma entrevista para a Vice). Em 40 anos de banda, só não produziram mais nada porque o Milo foi para a faculdade e passou uma grande parte desse tempo se dedicando intercaladamente à banda e à carreira de bioquímico. Durante os períodos em que ele ficou ausente, o resto dos integrantes participou de outros projetos, como o Black Flag (que contou por cerca de 2 anos com Bill Stevenson) e o All (que era basicamente o Descendents sem o Milo).
Apesar de toda a crise interna vivida pelo vocalista e dos hiatos gerados em decorrência disso, não fosse o sonho de ser cientista “para salvar o mundo” (de acordo com o documentário Filmage, de 2013), o famigerado álbum “Milo goes to college” não teria sido lançado — e nós não conheceríamos aquele rostinho-ícone que estampa tantas camisetas mundo afora!
O ano de 2016 começou com dois pés no peito quando eles lançaram o “Hypercaffium Spazzinate”. Além de ser um álbum muito bom, depois de 12 anos sem produzir nada de novo, o lançamento trouxe aquela esperança de que dessa vez eles viriam para o Brasil pela primeira vez em décadas. E ninguém se surpreendeu quando, pouco tempo depois, foi divulgado que eles entrariam em tour, e que passariam por aqui.
Foram meses de ansiedade (e de discussões também). Teve a questão dos ingressos que acabaram muito rápido e da produtora que a princípio se mostrava relutante em abrir mais uma data de show — mas no final deu tudo certo e tinha até como comprar na porta, na sexta-feira (02). Entretanto, o que abalou mesmo a galera foi a polêmica “tarde de autógrafos”. Com um total de 13 regras esdrúxulas, como não poder levar câmera fotográfica, ser proibido autografar qualquer coisa além do pôster oferecido pela organização (!) e a entrada ser permitida apenas com a doação de 10kg de alimentos não-perecíveis, o evento chegou a ser comparado à tarde de autógrafos concedida pela Avril Lavigne em 2014 — que até tirou fotos com os fãs, mas todas com uma “certa distância”.
Polêmicas à parte, se teve algo que os caras mostraram foi que para o punk não tem idade certa quando o show começou. Já nos seus passados 50 anos, deixaram até os mais novinhos com inveja da energia e disposição exibidos no palco. Eles não estavam aqui para conversar, estavam aqui para tocar. Por meio das músicas, contaram a história da banda: passaram por todos os álbuns e fases, tocando clássicos e não tão clássicos assim. “Hope”, “Silly Girl”, “Sour Grapes”, “Clean Sheets”, “Van”, “Rotting Out”, “Nothing With You”, “Shameless Halo”, e mais várias outras faixas que preencheram quase uma hora e meia de apresentação.
Dava para ouvir cada música ser acompanhada por aquela imensidão de vozes que sabia cada uma das letras de cor e salteado (exceto algumas do álbum novo). Como nada é perfeito, stage dive não rolou. Mas teve mosh suficiente para (tentar) matar a vontade. A falta de pessoas em cima do palco foi muito estranha para um show de hardcore tão clássico como esse. Outra coisa não tão comum assim de se ver nesses shows foi o “doce” que eles fizeram, saindo umas duas vezes do palco e voltando depois de muita insistência do público. Nessas horas eles soltaram algumas piadas e, claro, uma delas era sobre café.
Para uma banda de carreira tão extensa e com tantas músicas para rechear o setlist, faltaram alguns sons (“Good Good Things”, “Ace”, “We” etc). Mas deixaram muita gente frustrada por não tocarem “Cheer”, que foi pedida em coro por mais da metade do pessoal do início ao fim do show. Tudo bem que o setlist do dia anterior já tinha sido divulgado e ela não fazia parte dele. Mas esperança é a última que morre, certo…?
Verdade seja dita, cantar algumas músicas junto com a banda me causou um certo desconforto. E precisamos, sim, falar sobre isso. “Bikeage” foi uma delas. Dizer “You’re losing your little girl’s charm” (“Você está perdendo o seu charme de menininha”) para se referir a uma garota que gosta de sair, beber e usar drogas e depois se pergunta “por que ninguém a ama” ou “quem irá levá-la para casa e usá-la por aquela noite” não é legal. Mesmo que tenha sido escrita por meninos de 15 anos em meados dos anos 80. Quer cantar até hoje? Ok, mas vamos contestar. Ou o punk não é assim tão desconstruído quanto diz ser?
Ao menos a banda já mostrou que é capaz de fazer o mea culpa, e parou de apresentar em público o final controverso e preconceituoso de “I’m not a loser”:
“You arrogant asshole/Your pants are too tight/You fucking homo/You suck, Mr. Buttfuck/You don’t belong here/Go away you fucking gay/I’m not a loser!” (em tradução livre: “Seu cuzão arrogante/Sua calça é muito apertada/Sua porra de homossexual/Você é uma merda, Sr. Fode pela bunda/Você não pertence a esse lugar/Cai fora, seu gay/Eu não sou um perdedor!”).
Desabafo feito, dá para dizer que foi um show sensacional e muito democrático para os fãs. Não deixou nenhum álbum antigo de fora, divulgou as músicas do novo e deu espaço para a galera mais nova e mais velha curtirem o rolê juntos, cada um à sua maneira. Independentemente do jeito escolhido para aproveitar, não há dúvidas de que todo mundo saiu com a camiseta suada e deixou pelo menos 50% da voz perdida por lá. Eu ainda estou à procura da minha.
Para quem quiser, dá para assistir boa parte do show aqui (e se sentir presente no local, já que a câmera balança o tempo todo junto com a plateia):
Setlist (fonte: Setlist.fm)
1. Everything Sux
2. Hope
3. I Don’t Want to Grow Up
4. Nothing With You
5. Rotting Out
6. Testosterone
7. I Like Food
8. Sour Grapes
9. Pervert
10. Bikeage
11. Silly Girl
12. My Dad Sucks
13. Van
14. I Wanna Be a Bear
15. Weinerschnitzel
16. No! All!
17. Clean Sheets
18. Full Circle
19. Coffee Mug
20. When I Get Old
21. Coolidge
22. Without Love
23. Myage
24. I’m the One
25. Suburban Home
26. Descendents
Bis:
27. Talking
28. Catalina
29. Shameless Halo
30. On Paper
31. Thank You
32. Smile
Bis 2:
33. Feel This
34. Get the Time