Gabriel Leite Ferreira
No princípio era o beat. O primeiro aperitivo que o público teve da nova fase de Juçara Marçal foi em uma live, no dia 7 de abril de 2021. Como parte de um ciclo de transmissões que o Metá Metá fez naquele mês, Juçara veio à frente só, munida de samplers, percussão, piano e voz. Mais uma ruptura em uma carreira repleta de rupturas. Iyalode mbé mbé, a última faixa de Delta Estácio Blues, lançado em 30 de setembro, já marcava presença.
Meses depois, o que era expectativa se transformou em assombro. Crash, única música divulgada como single, tem as percussões características da live junto de um rap venenoso assinado por Rodrigo Ogi e cuspido com autoridade por Juçara. É a lógica do hip-hop interpretada por uma artista que não faz parte do movimento, mas também se nutre dele. “Eu não sou rapper”, ela afirma em entrevista ao site da Casa Natura Musical. De novo, a ruptura.
O que já é de se esperar, em se tratando de Juçara Marçal. Encarnado, a estreia solo lançada em 2014, é uma bomba que distorce o formato canção sem usar instrumentos percussivos — a guitarra, o cavaquinho e a rabeca se combinam em um quebra-cabeça ruidoso onde a voz se encaixa e destaca. Ao passo que, como bem apontado na entrevista para o podcast da revista Bravo, Delta Estácio Blues é todo beat, ritmo, graves.
Ainda que a cantora tenha participações em álbuns de rap (Nó na Orelha e Convoque Seu Buda, de Criolo, e RÁ!, de Rodrigo Ogi) e de outros tipos de Música eletrônica (Anganga, composto e gravado com Cadu Tenório, e Rocinha, de Mbé), Delta Estácio Blues representa um novo mergulho em outras possibilidades de composição. Ao lado do parceiro de longa data Kiko Dinucci, que produziu o disco, Juçara entrou de cabeça nos samplers e softwares de edição de áudio para dar forma a um trabalho radicalmente acolhedor.
As bases de Delta Estácio Blues vêm de “cacos”, termo que Juçara usa para caracterizar os diversos samples que ela e Kiko usaram para compor as faixas. Vi de Relance a Coroa abre os caminhos evoluindo a partir de três batidas para uma paisagem sonora ao mesmo tempo familiar e incômoda. Os glitches se espalham pelo instrumental como a “fuligem de brilho tão real” do Reis Malunguinho, entidade afroindígena mencionada na letra assinada por Siba.
O resto de familiaridade do disco se dissipa no momento em que começa Sem Cais. Quando o “mar agitado nas praias de ultramar” toma conta da música, nós, ouvintes, somos impelidos a navegá-lo sem os rótulos e gêneros musicais como “boias para nos salvar”. A sequência de faixas possui as bases eletrônicas como fio condutor, mas o que Juçara e Kiko inventam é de uma versatilidade tão distinta que restringir Delta Estácio Blues a um só fio é desperdício.
A faixa-título, inclusive, talvez seja uma síntese adequada da proposta apresentada aqui. A letra de Rodrigo Campos reimagina a história do mitológico Robert Johnson, figura imprescindível para a história do blues e do rock. Segundo a lenda, Johnson era um violonista comum até fazer um pacto com o demônio para adquirir habilidades sobre humanas no instrumento.
Mas, nesta terceira canção, Robert Johnson na verdade faz um trato com Bide, Baiaco e Ismael Silva, sambistas do bairro carioca Estácio de Sá, berço da primeira escola de samba do Brasil. Em apenas uma estrofe, duas tradições musicais são fundidas e a estética onívora de Delta Estácio Blues se assume, também, política: é preciso sempre reafirmar o pioneirismo radical das populações negras e periferizadas no samba, no blues, no rock, no rap; o que não significa responder a apenas uma dessas tradições, mas criar novas possibilidades a partir delas: “Delta Blues Mississippi cultua um novo deus”.
Talvez por isso Delta Estácio Blues tenha pouco de tradicional. Os instrumentos eletrônicos são manipulados de um jeito que faz com que a desorientação se torne o fundamento da audição inteira. Faz sentido um rap como Crash suceder os breakbeats e graves deslizantes de Ladra — e fazer isso sem cerimônia, sem preparo, com o sample fragmentado já de cara dando contorno a uma nova paisagem sonora.
Dirigido por Ana Júlia Theodoro, o videoclipe de Crash traduz essa fragmentação com uma sequência frenética de imagens simultaneamente cotidianas e insólitas: crianças mascaradas correndo, um homem fazendo a sobrancelha ao ar livre, um balão no céu. A velocidade dos cortes da edição se sintoniza com o flow e a voz ríspida de Juçara e, mais do que isso, passa uma sensação parecida à jornada de Delta Estácio Blues.
O acolhimento radical é ainda mais palpável na segunda metade do repertório. Especialmente em Baleia e Lembranças Que Guardei, que usam a imagem da profundidade para passar mensagens mais subjetivas, semelhantes às letras de Encarnado. As referências à pós-modernidade (“Deixa ela dançar na minha tela” em Baleia e o uso do autotune em Lembranças Que Guardei) dão uma dimensão particular a elas.
Entre as duas, La Femme à Barbe e Oi, Cat, versões para Brigitte Fontaine e Tantão e Os Fita, respectivamente. A jornada se aprofunda ainda mais, o tom duro de Crash volta à voz de Juçara Marçal e a sensação é de terra arrasada. Ao final de Oi, Cat, o sample do comício da Central do Brasil proferido por João Goulart às vésperas do golpe militar de 1964 reforça o desconforto.
Delta Estácio Blues, então, chega ao fim com o samba torto e nostálgico Corpus Christi e o oriki Iyalode Mbé Mbé, encerramento-acalanto da fonte inesgotável que é o segundo álbum solo de Juçara Marçal. Um conjunto de faixas que apontam inúmeros caminhos, ao mesmo tempo, dentro e fora de tradições. Uma invenção que só poderia ter sido batizada com um nome próprio, único e peculiar: Delta Estácio Blues.