Felipe Monteiro
Não foram poucos os que saíram do espetáculo confusos e ainda sem compreender ao todo a peça, os próprios atores fazem piada do fato. Mas é que realmente não é fácil deparar-se com o mar de signos que nos é apresentado logo de início em Cabras – cabeças que voam, cabeças que rolam, signos sobre os quais o desenrolar do espetáculo vai traçando fios que se completam em um belo tecido nas cores sertanejas.
Para tentar entender o que Cabras vem nos contar, proponho um jogo de visualização: tente imaginar-se penetrando no fundo do olhar de um cangaceiro-jaguatirica no meio da vegetação das regiões sertanejas do norte de Minas Gerais fronteiriças com Goiás e Bahia. Pois bem, o exercício pode parecer estranho, não muito compreensível e difícil de se imaginar, principalmente para nós tão acostumados com a cultura europeia e estadunidense que invade nosso cotidiano de moradores do Sudeste.
Alguns desses signos não são alcançáveis em plenitude por nós. Não temos o conhecimento do que é um cangaceiro, o que sabemos em grande maioria é um mito televisivo que nos repassam e que muitas vezes não chega à devida profundidade do que tudo isso do cangaço significa, todos esses humanos-onça e a secura em que vivem, mal sabemos qual é sua cultura, seus sons, suas cores e sua fé. É um pouco de tudo isso que Cabras vem nos contar, em um mapa em que é preciso algumas orientações para que se possa seguir a estrada.
A história da peça é contada partindo de um jogo de palavras. Valendo-se do regionalismo nordestino para cabra, no qual há uma identificação do sujeito com o animal que resiste à seca gerando então uma forma de tratamento, as histórias da peça são contadas por bicho-gente, ora bicho que conta história de gente, ora gente contando bicho num baile em que as identificações mútuas de um com o outro se tornam uma amálgama que pode confundir, mas é belo e rico. Os atores, em incrível domínio vocal e de corpo, reproduzem os sons das feras, da selva, fazem toda uma cultura materializar-se e ressoar em nossos peitos por meio de cancioneiros populares, batuques, berros, uivos, guizos, flechas. O teatro musicado de Cabras fornece aos olhos uma bela ciranda em que dança, luta, garras e poesia dançam para nos contar da vida de sua gente, de seus bichos.
Os pequenos deslizes como esquecimento de fala superado com desenvoltura e o arranhado na voz em meio aos brados que passou quase despercebido, não passaram de marcas de corpos muito bem preparados e resistentes, já que é preciso muito fôlego para a agitação e cantoria do espetáculo, não afetaram em nada a grandiosidade do que nos é apresentado.
Guerrafestafé
As cenas são divididas em quatro quadros, ou lugares como a companhia define em sua sinopse, cada qual trazendo um aspecto da narrativa que vai se firmar e ganhar mais nitidez em seu quadro final. O cenário é minimalista, chão que reproduz a aridez da caatinga com uma estrutura de madeira cônica representando ora árvore sagrada, ora altar de cabeças, um tablado retrátil que fica escondido e é utilizado no momento de festa. As cores que predominam no figurino e no cenário são o marrom do solo, o vermelho do sol ardente e impiedoso e também do sangue perdido nas lutas, o azul do céu crepuscular que anuncia a noite, a morte.
O primeiro lugar que nos é apresentado é Guerra e, como bem evocado no texto, vem sem festa porque é lugar de respeito. Em Guerra, temos lutas de cangaceiros narradas por seus predadores, temos lutas interpessoais e rixas de famílias que se destroem. O inimigo é mais conhecido que o amigo. É possível ouvir o carcará de Bethânia rondando a todo instante para pegar, matar e comer! Morte é um tema recorrente, os corpos caem e são devorados, as cabeças rolam e os sentimentos perduram, deixam marcas nas pessoas, nas cidades e grupos. Uma luta constante de sobrevivência, mas também de uma ira irracional.
Em seguida somos apresentados ao quadro Guerra-Fé, no qual o mistério e o oculto tomam conta em meios às folhas e areia. Nesse espaço metafísico é possível ver uma Oxum fazendo procissão católica e bate-folhas. Rituais exóticos de dor e de beberagens expurgam a dor dos povos que sofrem em meio às mortes que invadem até os espaços santos. O pagão e o cristão fazem romaria e evocam louvores de proteção, de luta e de renascimento. Tem até a aroeira, árvore sagrada dos índios, que conversa com as pessoas, conta-lhes os segredos da vida.
A cachaça chega anunciando uma pequena trégua, cabras bons servem a bebida e amendoim para a plateia, conversam com os espectadores e fazem rir. O álcool é importante para entrarmos em Guerra-Festa, o espaço que se apresenta após essa pausa, nele somos convidados a dançar e celebrar com cabras-gente, uma releitura brasileira aos sátiros do teatro grego. Nessa festa que começa, a música embala histórias de violência e morte e todos riem. Uma das falas provoca nos contando a vida de uma bala, é a nossa vida, breve de mais como risco de raio no céu e que nesse curto tempo é preciso encontrar seu sentido. Com balidos e gestos muito precisos, os atores se apresentam como cabras em uma ciranda, detalhe notar a riqueza de detalhes em que os atores reproduzem as patas bifurcadas com os dedos.
Findada a festa, é chegado o momento em que os signos lançados do começo e até então costurados de forma irregular parecem ganhar uma forma mais concisa. Questionamentos são levantados sobre a questão da violência, do espaço que ganha cercas que separam, ordenam, controlam, identidade e a perda dela, além de uma cosmogonia indígena que nos é narrada contando as cores e as vidas da natureza.
Uma cartografia em tons de ocre e sangue
A peça Cabras nos oferece um mapa do Brasil que não nos é ensinado quase como em Grandes Sertões Veredas. Seus textos evocam a cultura das matrizes brasileiras em suas disputas e sua miscigenação. Com riqueza oriunda de extensa pesquisa, a obra evoca os sons dos indígenas com instrumentos como chocalho e flautas, formações alinhadas e com batidas dos pés no chão são repetidas em cena, entoam-se cânticos e brados tribais. A festa indígena se embrenha nas procissões e romarias cristãs assimiladas pelo povo que segue a fé como salvação ou um ponto de referência na vastidão do sertão. As mirongas e os ritos das culturas africanas, principalmente do culto dos orixás, são feitas no palco-terreiro.
A seca e as condições áridas que extrapolam a questão do bioma, uma aridez econômica, estão presentes do começo ao fim do espetáculo. O que os textos dos quadros questionam é a formação de um poder que se apropria da terra, forma os bandos que obedecem, o coronelismo que mata todo dia, não só por meio dos jagunços, mas por políticas que perpetuam a aridez que desumaniza e gera violência em nome de dinheiro. A árvore sagrada dos índios é contada como móveis, portas e acessórios para casas. Paralelo à fartura das casas grandes, vemos em cena os corpos induzidos a uma situação de luta para sobreviver à fome de tudo.
O estranhamento inicial da peça se dá por termos em mãos esse mapa sertanejo que não nos é contado, é uma realidade e uma riqueza de cultura que passa esquecida nas grandes metrópoles embebidas de cultura estrangeira e movidas a um consumo que financia essa dominação dos corpos nas regiões mais carentes do país.
Uma das cenas mostra um altar com inúmeras cabeças remetendo claramente a uma das fotos tiradas do bando de Lampião, todos decapitados e colocados em uma estrutura de altar com suas armas e indumentária ao lado. E a pergunta que paira sobre nós em desgosto é até quando cabeças vão rolar? Ê cabra ê, ê cabra ô!