Adriano Arrigo
Os olhos de Ana Júlia Lucarelli não paravam de acompanhar os traços de carvão que a artista Letícia Sekito desenhava no chão da entrada do Sesc Bauru. Letícia era convidada do Sesc para a abertura da mostra Arte Contemporânea no Acervo Sesc, apresentação itinerante que chegou a Bauru em 30 de Abril e permanecerá até 2 de Julho. Assim como Ana Júlia, outras crianças permaneciam no local, bem no limiar entre a performance de Letícia e o espaço dedicado ao público.
Para elas, algo muito interessante acontecia ali. Ao som das texturas musicais do artista Manuel Pessoa Lima, que ambientavam com tons obscuros o hall de entrada da unidade, Letícia, melada de pó preto, desenhava riscos aparentemente sem conexão no chão. As crianças vinham de todos os lados e pegavam pufes para sentar e observar esse evento. Já os adultos ficaram de longe escoltando a performance com suas câmeras, luzes e celulares.
“Pelo que eu entendi, o carvão é a árvore. E ela estava tentando reconstruir a árvore ali porque ela estava fazendo o pezinho da árvore com o carvão. Achei muito interessante porque no meio tinha som de carro na rua, ônibus, essas coisas. E aí que a gente tem que ajudar a preservar a natureza”, conta Ana Júlia, sobre sua interpretação da performance. Os sons produzidos para a performance assustavam as pessoas que passavam pela entrada, mas Ana se manteve concentrada. “Não fiquei assustada. Achei interessante pelo que ela estava fazendo.”
A performance se tratava do experimento #15, que compõe a série Fluxos em Preto e Branco, iniciada em 2011. Cada apresentação única mostra a relação entre dança e desenho mas, sobretudo, a relação corporal, gesto e acaso. “A pergunta é o que pode acontecer quando eu escuto o que está acontecendo no momento e no meu corpo, sempre em relação a alguma coisa, que começa com uma relação física. Eu considero o carvão um corpo, então é a minha relação com o peso, a forma e a sensação que ele me dá. E isso gera a ação física”, explica Letícia.
Ana Júlia estava correta em sua interpretação. Naquela noite, a artista também enxergou os 15 quilos de carvão usadas em sua performance e sua relação com a natureza. “Até então, eu pensava o carvão como algo que era apenas objeto de marcação e traço. Mas aqui, veio o carvão como matéria, algo que tem memória; como algo que, a princípio, está carbonizada gera vida? Extrapola a questão do desenho e do vestígio. Veio-me a sensação da memória, tempo e ancestralidade”, conta Letícia.
E, por coincidência ou não, a escultura Espírito Santo Negro (2002) de Ronaldo Brandão, apresentada também de material carbonizado, reflete a materialização da memória. A peça é somente uma das dez escolhidas pelo Sesc que garantem a representatividade de materiais como aço, cerâmica e acrílico e que perpassam fotografias, esculturas e objetos na exposição. No caso da obra de Brandão, pode-se também identificar o mito do Espírito Santo, aqui representado por uma pomba – além de certa subversão, em tratar o objeto provido de um material morto para representar a vida. Mas essa é somente uma das interpretações possíveis que a mostra pode proporcionar.
A materialização de um gosto, sentimento ou ideia ultrapassa a questão da matéria nas obras apresentadas na exposição. Elas também são representadas pelo fragmento de um momento como é o caso das peças Polissemia N (2003) de Suzy Okamoto e Karlla Girotto e Narciso 5 – A Primeira Fala (1998), de José Luiz de Pellegrin. Em ambas, a fotografia é suporte para valorização de uma ideia; na criação da dupla Okamoto e Girotto, temos o busto nu de uma mulher traçado por pérola. O cabelo azul de Girotto já coloca em xeque os padrões de beleza no mundo contemporâneo. E como na performance de Letícia, o corpo também é palco de demonstração artística. Já o trabalho de Pellegrin nos remete a pensar sobre a aparência vista pela ótica deformatória de espelhos e fotografias.
Por apenas essas duas obras e a performance da Letícia, é fácil perceber a presença do corpo na mostra além de temas correlatos a este tema. O trabalho de José Paulo intitulado Círculos (2010) é composto de aros de ferro preenchidos parcialmente por objetos ovais feitos de cerâmica. Um convite da dureza da gestão ou ainda sobre manipulação genética e seus desborramentos éticos, como sugere o material educativo da exposição.
A exposição tem um carácter bastante educativo, mas não lúdico, como na última apresentação da unidade, Arte à primeira vista. Porém, a programadora cultural do Sesc Bauru, Eli Pimenta, conta que a escolha do tema possui carácter pedagógico. “É uma forma de informar além de formar o público. No período da manha e da tarde recebemos escolas para visitação guiada. A visita guiada serve para que a pessoa se questione como a arte lhe toca”, explica Eli.
O supervisor da exposição José Victor Oliveira, mais conhecido como Zeca, acredita que o ambiente da mostra traz um certo receio nas visitas. “Será que eu posso tocar na obra? Será que eu não posso? Se eu for falar, será que eu vou falar besteira?”, conta Zeca, que então destaca a importância dos instrutores. “Mas é óbvio que a interpretação está a cargo do visitante, e as leituras são baseadas na vivência e pessoal de cada um. As vezes as pessoas têm uma peça de arte em casa, mas a arte contemporânea chama atenção pelo seu tamanho. A obra de entrada (Círculos) desperta uma curiosidade enorme do público.”
Em seu espaço fechado somente por paredes que retém as obras, a curiosidade, de fato, é um dos objetivos que a exposição proporciona. A curadoria foi bastante precisa nesse sentido, já que as criações merecem ser vistas de perto, observadas e detalhadas. Ao final, a curiosidade vai dando espaço para a reflexão sob o impacto da arte contemporânea que, aos primeiros olhares, podem parecer estranhos, mas fazem mais sentido quando vistas de longe de firmes paradigmas e convenções.