Anomalisa: o mundo de Kaufman

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Matheus Fernandes

Há pouco mais de uma década, o roteirista Charlie Kaufman era um dos principais nomes no cinema americano, com obras autorais que fugiam do padrão hollywoodiano e abordavam temas complexos e surreais. Junto do diretor Spike Jonze, fez “Being John Malkovich”, sobre a possibilidade de entrar na mente do famoso ator, e “Adaptation”, um filme meta-referencial sobre bloqueio criativo, seguindo a herança de “8 ½”. O ponto alto de sua carreira veio em 2004, com “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, dirigido por Michel Gondry, romance de ficção científica que ocorre dentro de uma  mente humana em processo de apagamento, em uma das melhores representações do funcionamento cerebral já feitas, muito antes de “Divertida Mente” abordar o tema.

Em 2007, Kaufman estreou como diretor em seu projeto mais ambicioso até então, “Synecdoche, New York”, um drama pós-moderno que combina metalinguagem sobre uma peça dentro de uma peça (dentro de um filme) com referências extensas à psicanálise Jungiana, literatura mundial e os conceitos de Baudrillard, tudo isso liderado pela excelente performance de Philipp Seymour Hoffman. O filme foi um fracasso comercial, talvez devido à complexidade dos temas abordados, passando longe do sucesso de “Brilho Eterno” e arrecadando muito menos do que o investido. Em uma época de altas bilheterias em mercados asiáticos emergentes e sequências de remakes, isso é suficiente para destruir carreiras.

A solução foi o crowdfunding, onde em 2012 Kaufman arrecadou 400 mil dólares para Anomalisa, inicialmente um curta metragem de animação, seguindo a escolha de gênero de Richard Linklater em “Waking Life” e “Scanner Darkly” e, principalmente, dos diretores Tim Burton, com “Estranho Mundo de Jack” e “Noiva Cadáver”, e Wes Anderson com “Fantástico Senhor Raposo”, que também usaram a técnica Stop Motion em suas obras. A história inicialmente havia sido escrita para uma “peça auditiva”.

“Anomalisa” conta a história de Michael Stone (David Thewlis), escritor de autoajuda especializado em comunicação empresarial, que passa uma crise de meia-idade. Os problemas na vida de Stone são mais do que emocionais. Todas as pessoas ao seu redor tem a mesma aparência (algo entre os personagens de Team America e uma versão robotizada do presidente russo Vladimir Putin) e a mesma voz monótona, interpretada pelo ator Tom Noonan.

Stone está em Cincinnatti para uma palestra motivacional corporativa, no hotel Al Fregoli, referência a síndrome de Fregoli, onde o paciente acredita que todas as outras pessoas se tratam de uma mesma disfarçada. Sozinho no quarto, preenche o tempo com álcool, ligações malsucedidas para a família e a obsessão por uma ex-namorada de 10 anos atrás da cidade, com quem eventualmente tem um encontro fracassado. Durante a noite encontra Lisa Hesselman, única pessoa diferente dos outros, talvez a única outra alma do mundo, com quem engata um romance de uma noite.

Lisa tem uma vida desinteressante, um emprego ruim em atendimento a clientes e uma aparência que causa insegurança, marcada por uma cicatriz escondida embaixo do cabelo. Ainda assim, sua normalidade inicial acaba destacando-o, em um mundo burocrático e massificado, repleto de bajuladores, taxistas incômodos e funcionários insistentes, sendo uma anomalia no mundo do filme. O isolamento causa a união dos dois, por maiores que sejam duas diferenças e mais efêmero que seja a relação.

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O momento mais emocional da relação é acompanhado pelo hit pop oitentista “Girls Just Wanna Have Fun”, tipicamente classificado como kitsch. Ouvir uma voz diferente traz lágrimas à Stone. A música industrial vazia é acrescida de emoção, se adaptando ao contexto dos personagens, em uma apreciação autêntica, assim como a aparição de “Wonderwall” em “Mommy”, outro filme que mescla as fronteiras entre referências consagradas e a industria cultural.

O sexo, tema raramente abordado nas animações, se destaca de maneira positiva pelo realismo. Ainda que o conceito de relações entre bonecos pareça incômodo e inusitado, o filme acerta mais do que boa parte das cenas no gênero, ao retratar personagens que sentem constrangimento, possuem inseguranças em relação ao corpo, tem dúvidas sobre a etiqueta de conversar e batem a cabeça na parede em momentos de empolgação.

Ao acordar no dia seguinte, Stone tem uma crise em um estilo surrealista que mistura a própria obra de Kaufman com “Brazil” e “O Processo”, e começa a enxergar Lisa como outra das cópias. Sua palestra acaba tomando um tom de denúncia e paranoia contra o capitalismo e o governo americano. Antes de desenvolver mais temas no filme, Michael parte de volta para sua família robótica, abandonando Lisa, fazendo de seu relacionamento uma anomalia na vida corporativa e tediosa.

Dirigido em co-parceria com o animador Duke Johnson, o filme opta por um estilo realista, bordeando o Uncanny Valley, ainda que longe do desconforto causado por Beowulf e Expresso Polar. Chama atenção também a técnica utilizada, baseada em impressoras 3D.

A indicação do filme ao Oscar indica uma nova direção da academia, que anteriormente ignorava as animações destinadas à um público adulto, esnobando filmes como “Mary & Max”, “Waking Life” e a obra do gênio japonês Satoshi Kon – responsável por obras complexas como “Perfect Blue” e “Paprika”, que inspiraram filmes hollywoodianos como Inception e Black Swan. Mesmo o documentário animado israelense “Valsa com Bashir”, indicado a melhor filme estrangeiro em 2008, falhou em se classificar para o prêmio de melhor animação, disputado naquele ano por “Wall-E” e os questionáveis “Bolt” e “Kung-Fu Panda”.

Ainda que visivelmente mais simples que os antecessores, com menos referências e metalinguagem, “Anomalisa” acerta ao abordar temas como depressão e a solidão de maneira realista e sensível em uma animação moderna e adulta, exemplo raro no cinema ocidental, que mostra que Kaufman e seu talento continuam relevantes em retratar um mundo complexo.

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