Henrique Marinhos
Enquanto Barbie levava multidões trajadas de rosa aos cinemas em 2023, Ainda Temos o Amanhã (C’è Ancora Domani, no original) alcançou o topo das bilheterias na Itália só com o preto e branco. O debut como diretora de Paola Cortellesi encantou ao construir uma narrativa neorrealista ambientada em 1946, em uma Itália devastada após o fim da Segunda Guerra, na qual todo e qualquer homem é coadjuvante.
O filme é hipnotizante. Toda sua construção converge e desencadeia sentimentos semelhantes aos de maratonar uma série em um final de semana, depois de deixar episódios semanais acumularem. A protagonista tem uma proximidade excepcional com o público e passa longe de tudo que possamos considerar desinteressante. Queremos continuar acompanhando sua vida, suas relações e todas as suas decisões: até onde Délia iria por si e por quem ama?
O tom do filme se dá em seus primeiros takes. A rotina de Délia começa com um tapa de seu marido sem qualquer aviso ao acordar, como quem passa a manteiga no pão. Ivano (Valerio Mastandrea) é a figura de um cônjuge autoritário em uma sociedade em reconstrução; a representação do poder patriarcal é guiada por seu pai, que até o adverte para não agredi-la todos os dias… para que não se acostume. Caso tenha companhia ao assistir e ela não esboce qualquer reação de indignação, considere isso, no mínimo, uma red flag.
Em linhas gerais, Cortellesi entrelaça sua obra com o cenário contemporâneo e suas raízes, declarando que, sejam jovens ou idosos, italianos reconhecem no filme um pouco de sua própria família. Não necessariamente remetendo à violência, mas a certas atitudes em relação às mulheres. Representação que, sem dúvidas, atravessa fronteiras e oceanos, explicitando o trajeto para a igualdade que ainda nos resta percorrer.
Polêmica e controversa, a forma com que a diretora conduz os gêneros do longa explicita a dúbia, difícil e complementar tarefa de equilibrar o Drama e a Comédia. As escolhas na representação da violência física e dos momentos de descontração foram os maiores tópicos de discussão em comentários e críticas pelas redes sociais. Enquanto a tensão ao longo do dia cresce a cada minuto no que culmina na exaustiva, frustrante e repulsiva agressão por qualquer justificativa ignóbil de seu marido, o clímax e pesar do ato são substituídos por performances musicais, coreografadas e até amorosas.
Entre a suavização, banalização e normalização da violência ao utilizar tal abordagem, a linha entre fazer uma crítica e reproduzir padrões se perdeu no conceito, mas não na estética. A linearidade e percepção de tempo não deixa claro ao público a seriedade e consequências acumuladas pela protagonista. No entanto (e felizmente), esse aspecto é complementado pela frustração e indignação de sua filha Marcella, maravilhosamente interpretada por Romana Maggiora Vergano.
Além de ser dona de casa, mãe de três filhos e cuidadora de seu sogro senil e repugnante, Délia ainda remenda roupas, conserta guarda-chuvas, lava lençóis e aplica injeções para conseguir alguns trocados que deve ao seu marido. Roubando um ‘bocado’ – de seu próprio dinheiro – ao fim do dia, seu principal objetivo é dar para Marcella um futuro melhor que o seu. E é entre todos esses ‘bicos’ que nos perdemos completamente. Reconhecer os pequenos prazeres da vida nunca foi tão real quanto aqui.
Na venda, durante as compras, conhecemos Marisa, a maior confidente e cúmplice da protagonista, premiada e interpretada brilhantemente por Emanuella Fanelli, que se refere a Ivano como carcereiro. Conhecemos suas colegas que lavam roupa e, provavelmente, inventaram o que conhecemos como fofoca; conhecemos também seu flerte do passado e torcemos para que seja seu futuro; além de um soldado americano à paisana que, por um simples gesto, está em dívida com ela. Podemos até contemplar os olhares complacentes de outras mulheres ao longo do dia, mas tudo isso se desmonta ao chegar em casa.
Toda essa atmosfera entre esperança e desespero é acompanhada de planos sequência, close-ups e a maestria na utilização da escala de cinzas por Davide Leone. Para além da técnica, ele também mostrou como a fotografia e a montagem, feitas por Valentina Mariani, são artes que quase se personificam. Por outro lado, a trilha sonora, assinada por Filippo Porcari e Federica Ripani, acompanha bem o dia-a-dia, porém peca ao exceder-se com trechos longos e fora do tom de 1946. Outro ponto que foi fundamental e, junto à fotografia, nos teleportou para a Itália, foi a decoração de set por Fiorella Cicolini: sem ‘firulas’, simplista e detalhada, não deixa brechas para o questionamento da beleza das comunidades italianas em todas as suas nuances.
Não surpreendente, Ainda Temos o Amanhã não conquistou somente o público com a maior bilheteria italiana de 2023, mas também a Academia do Cinema Italiano na premiação cinematográfica mais importante do país, o Prêmio David di Donatello. Com 19 nomeações, o filme arrecadou seis estatuetas, entre elas: a de Melhor Primeira Obra e Melhor Atriz Principal, para Paola Cortellesi; Melhor Atriz Secundária, para Emanuela Fanelli; Melhor Roteiro Original; Prêmio do Público; Prêmio da Juventude.
Sem muitos spoilers, a trama mais significativa do filme e, talvez, para Délia, seja assegurar que Marcella, sua primogênita que foi proibida de estudar pelo pai, possa ter um futuro diferente do seu, reconhecendo padrões que a filha ainda não tem malícia para entender. Os planos de fuga, esconderijos e cartas secretas são endereçados não a si mesma, e sim ao amanhã, e é por esse motivo que nos contorcemos. Por mais que ela seja cativante, a história de uma mulher de classe baixa e resiliente ainda é limitada pelo contexto histórico e condições materiais e ideológicas que permeiam a trama.
O longa ressalta a importância da retratação de cenários cotidianos de pessoas comuns na formação da consciência histórica, além de ser uma crítica às estruturas de poder. Entre temas como o feminismo, a autonomia financeira, educação e outros direitos, o filme se torna um espelho das lutas passadas e presentes das mulheres, refletindo as dificuldades enfrentadas em um mundo que ainda carrega o peso do patriarcado e a persistência de padrões de comportamento, que perpetuam a opressão. A busca por um futuro melhor para sua filha é a esperança que intitula o longa. Afinal, ainda temos o amanhã.