Gabriel Oliveira F. Arruda
Quando o Cavaleiro Verde levantou sua própria cabeça decepada, olhou Gawain nos olhos e disse “Daqui a um ano…”, ele poderia estar se referindo tanto ao golpe mortal destinado ao jovem, quanto à espera estendida que teríamos para ver a nova adaptação cinematográfica do poema medieval. Após ter estreado nos cinemas americanos pouco antes de julho acabar, A Lenda do Cavaleiro Verde chegou em VOD na metade de agosto, para delírio daqueles que esperavam desde 2020 pela visão do diretor David Lowery (Sombras da Vida) sobre a clássica fábula escrita por um autor desconhecido.
Uma das mais famosas lendas arturianas, Sir Gawain e o Cavaleiro Verde narra a história do mais novo dos cavaleiros da Távola Redonda e sua jornada para completar uma proposta perigosa, que acaba virando um teste de seu próprio cavalheirismo. Porém, nesta versão, Gawain ainda não é um cavaleiro e sua jornada para além das paredes de Camelot em busca de honra rapidamente se torna uma parábola de reciprocidade que o levará não só até aos confins do mundo, mas também de si mesmo.
Mais do que um jovem querendo se provar, o Gawain de Dev Patel é um homem profundamente dividido, por suas tentações e sua honra, sua bravura e seu medo, suas tradições pagãs e a ascensão do cristianismo (em uma das principais alterações do texto original, ele é filho da temível Fada Morgana, interpretada por Sarita Choudhury, única outra pessoa indiana do elenco). Patel incorpora tanto a sensualidade romântica da figura mítica quanto as nuances mais modernas estabelecidas pelo roteiro de Lowery, representando não só o cerne das figuras arturianas, mas também um intruso à elas, que busca se assimilar aos seus pares por meio de um grande feito.
Mesmo que a etnia do ator não tenha sido considerada em seu casting, de acordo com o diretor, sua presença na Távola Redonda é inerentemente política, e ajuda a delinear o arco moral de sua personagem e de várias passagens da história, como apontado por Angeline Rodriguez em uma análise de A Lenda do Cavaleiro Verde para o site Polygon:
“O status deles como estrangeiros adiciona a familiar tensão de assimilação para a necessidade palpável de Gawain de se provar para seu rei-tio branco e seus companheiros através de um ato apropriado de grandeza – isto é, violência. Ele precisa provar para eles e para uma audiência contemporânea que ele é menos deslocado do que aparenta ser. Quando o Cavaleiro Verde chega, uma presença ainda mais estrangeira e colorida do que ele mesmo, Gawain agarra a chance de poder lhe dar o golpe mortal com o desespero de um homem que sabe que não pode pertencer a menos que mate o que pertence ainda menos do que ele.”
Apesar do tema de reciprocidade ecoar ao longo dos diversos encontros que o protagonista tem à caminho da Capela Verde, talvez sua violência seja sua linguagem mais afiada: os termos estabelecidos pelo Cavaleiro Verde no início do jogo não estipulam que o golpe deveria matá-lo, apenas que ele pudesse devolvê-lo um ano depois. É por escolha de Gawain, sem dúvidas influenciado pelas expectativas de seu tio, que o golpe da famosa Excalibur decepou a cabeça da figura monstruosa. Portanto, é dever dele partir para completar o círculo, carregando o machado do Cavaleiro como um símbolo de sua missão.
Até mesmo quando o jovem parece não querer tê-lo por perto, o machado parece achar seu caminho até ele, um prenúncio sobrenatural e incômodo de seu destino e o que ele precisará fazer. Dev Patel traz uma humanidade curiosa e familiar à figura lendária de Gawain em A Lenda do Cavaleiro Verde, imbuindo-o com dúvida e medo, mas mesmo assim fazendo com que a audiência ansie por seu bem estar, para que ele ache algum jeito de sobreviver ao encontro. O truque verdadeiramente brilhante que David Lowery faz com essa simpatia é colocar o próprio conceito de honra em dúvida, confundindo não só seus personagens, mas também as noções que o público tem sobre eles.
Afinal, Gawain não deveria receber o mesmo golpe que desferiu? E mesmo se ele obtivesse uma maneira de evitá-lo, que honra possivelmente haveria nisso? Se ele esperava matar o Cavaleiro Verde com seu golpe, por que seria errado esperar que o mesmo aconteça com ele? Através de seus encontros nessa jornada, sua fé nas noções cavaleirescas vai sendo testada, e suas dúvidas começam a tomar formas assustadoramente tangíveis.
Conforme avança para além das terras que conhece, uma de suas primeiras aventuras o leva até um campo de batalha sendo pilhado por um Salteador (Barry Keoghan), que lhe conta sobre a batalha que ocorreu ali, na qual o Rei matou sozinho quase mil soldados. Seria esse o mesmo Arthur que Gawain que conhece, interpretado de forma calorosa e febril por Sean Harris, que mal conseguia brandir sua famosa espada? Quanto da grandiosidade de Camelot foi paga com o sangue dessas batalhas? E quantas das lendas contadas sobre elas são verdadeiras?
Mais a frente, quando se encontra com um espírito vagante (Erin Kellyman) que pede sua ajuda para recuperar sua cabeça, depositada no fundo de um lago, Gawain pergunta o que ela lhe daria em troca de tal serviço. Com perfeita incredulidade, ela retruca: “Por que me pergunta isso? Por que me perguntaria isso?”. Envergonhado, o jovem mergulha no lago, onde recupera a cabeça da mulher em uma sequência surreal na qual as profundezas se tornam vermelhas e Gawain é obrigado a nadar para cima ao invés de para baixo.
Mesmo que o longa de Lowery não faça parte do gênero de terror, é difícil negar o quão bem algumas de suas sequências se enquadram em sua estética sombria e opressiva. O bizarro e inexplicável são ocorrências comuns em suas andanças e, mesmo quando os personagens reconhecem-nas como tal, isso só agrega ao clima de hostilidade que parece infectar seu protagonista antes mesmo que ele parta em sua aventura.
Em sua fotografia, A Lenda do Cavaleiro Verde carrega seus temas tão bem quanto em sua narrativa, colocando cores em oposição ou sintonia, oferecendo um diálogo silencioso entre seus temas e personagens que dura do início ao fim da obra. Num dos momentos mais hipnotizantes do filme, a Senhora interpretada por Alicia Vikander (que também interpreta sua namorada camponesa em Camelot, Essel) explica a Gawain porque, exatamente, o Cavaleiro é verde:
“Enquanto procuramos pelo vermelho, o verde está vindo. Vermelho é a cor da luxúria, mas o verde é o que a luxúria deixou para trás, no coração, no ventre. Verde é o que fica quando o fogo se esvai, quando a paixão morre, quando morremos, também. Quando se for, suas pegadas se preencherão com grama. O musgo cobrirá sua lápide e, quando o Sol nascer, o verde estará por toda parte, em todas as suas tonalidades e matizes.”
O Cavaleiro Verde é, por sua vez, uma figura que se destaca imediatamente contra a santidade fria e pétrea da corte de Arthur. O ator Ralph Ineson, com seu vozeirão particular e algumas camadas de maquiagem e efeitos práticos, se apresenta quase como uma invocação da própria terra, elevado até lá através das maquinações de Morgana (que é bem mais proeminente nesta versão do que na original), levando a decomposição consigo – assim como nova vida. Essa dualidade é o cerne da personagem, e está presente em boa parte do longa, que trata a dicotomia entre vida e morte como algo inevitável e até trágico, mas nem por isso negativo.
Seguindo essa deixa, boa parte da trama de A Lenda do Cavaleiro Verde se apresenta em forma cíclica, seja pela maneira com que Gawain perde suas posses e as reencontra ao longo da missão, ou em como a câmera do diretor de fotografia Andrew Droz Palermo se move ao redor do próprio eixo, marcando a passagem de tempo para frente e para trás. O simbolismo dos ciclos influencia boa parte da interpretação poética do diretor sobre o texto original, permitindo que a história se transfigure organicamente conforme seu jovem herói trilha seu caminho à procura de honra e, ao final dele, essa própria honra seja redefinida.
Parte do que faz o longa de Lowery ser uma experiência tão densa e comprometida é o quão deliberado cada aspecto dela parece ser. Cada frame vem carregado de emoção, simbologia e subversão impossivelmente detalhados ao longo de suas duas horas de duração, mas que são sempre ancorados pelo roteiro em motivações familiares e envolventes. Seja na reinterpretação de suas personagens ou na reinvenção de seu clímax, o épico arturiano encontra aqui uma de suas versões mais sintáticas e impactantes, em uma trajetória que completa o arco moral de seu protagonista de maneira absolutamente arrebatadora.
Em seu coração, A Lenda do Cavaleiro Verde narra a luta de um homem contra a inevitabilidade do resultado de suas ações, assim como o significado por trás delas. Através da batalha interna de Gawain, o longa de David Lowery nos pergunta como seremos capazes de lidar com as consequências dos atos que cometemos por arrogância, covardia ou crueldade e, através de uma resposta tão rígida e imutável quanto seu antagonista, termina sua fábula mítica com uma das sequências cinematográficas mais poderosas do ano.
Em um mundo que, às vezes, parece decidido a encarar seu fim de braços cruzados, em que a impotência nos tenta a agir com indiferença, histórias como a de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde continuam a ser relevantes. Nela, a importância de saber dar e receber não está apenas na violência da espada e do machado, mas na compaixão de um toque tenro em um momento difícil, e como somos os únicos capazes de determinar nossa própria honra.