Vitor Evangelista
Minha bisavó morreu há pouco tempo. Nunca antes tinha sentido perda tão próxima, nem acolhido o vazio como um velho amigo tão rápido. Não sou chegado em críticas em primeira pessoa, mas ocasiões excepcionais demandam escolhas extraordinárias. Passei muito tempo ‘guardando’ A Ghost Story (2017) para o futuro, mesmo sem saber o porquê. Agora, entendi. O conto de tempo e fantasmas chegou à Netflix e decidi assistir. Encontrei um estudo sobre a solidão e os vazios que preenchemos no mundo, uma história íntima que me ligou pro fato de que ainda não sabemos processar todas essas emoções sem remetente físico.
Em A Ghost Story, que ganhou o título nacional de Sombras da Vida, conhecemos a rotina de um casal, C (Casey Affleck) e M (Rooney Mara). Longas tomadas deles vivendo numa casinha de campo, ele tocando o piano que veio na mudança e o silêncio do lar. Inesperadamente, C morre e deixa M sozinha. O filme é simples quando fala sobre o tempo e a fragilidade de tudo que nos cerca. C vira um fantasma. Ele vaga pela casa, com um lençol branco cobrindo seu corpo, nunca diz nada. Ele acompanha o luto da esposa, assiste atônito enquanto ela segue em frente.
Nós, como público, sentamos no banco do passageiro do fantasma C e acompanhamos os dias irem embora, enquanto ele se mantém encarcerado no ambiente que encontrava amor. David Lowery escreve e dirige sem pressa. Mesmo com uma hora e meia de duração, A Ghost Story pode parecer mais longo. Sequências enormes são filmadas sem trilha sonora, com a câmera parada e pouca movimentação dos personagens. É quase um filme ensaio. Enquanto assistimos M comer uma torta inteira sem cortes, pensamos em nossas próprias experiências, nossos temores e fantasmas.
A canção I Get Overwhelmed, que aparece ora ou outra no longa, martela as emoções quando é inserida em contextos distintos. O diretor sabe silenciar tanto seu ambiente quanto seu protagonista, sabe que não há muito a ser dito. Is your lover there? Is she wakin up? Did she die in the night? And leave you alone?. O longa é incisivo quando debate tempo e legado, são sequências intuitivas, terapêuticas. Até mesmo a escolha de filmar usando uma escala menor, quadrada e com as bordas arredondadas entrega ao filme uma sensação amadora, como uma filmagem caseira e sem a pompa técnica, a simplicidade é chave.
O luto sempre foi uma incógnita na arte. A psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross conseguiu identificar a reação psíquica de cada paciente em estado terminal e elaborou as cinco fases do luto. Por mais que acatemos negação, raiva, barganha, depressão e aceitação como verdades relativamente absolutas, a complexidade não acaba aí. Toda emoção é volátil, vai e vem. O seriado Six Feet Under (2001-05), grande sucesso da HBO, começa com a morte do patriarca da família dona de uma casa funerária. O desenrolar da história entoa nas notas da superação, mas não existe fórmula secreta ou remédio em gotas prescrito na farmácia.
Em 2004, Sofia Coppola ganhou o Oscar de Roteiro Original com seu fabuloso e melancólico Encontros e Desencontros, também disponível na Netflix. Lá, Scarlett Johansson e Bill Murray vivem dois amargurados com perdas, que encontram na companhia silenciosa um do outro o conforto momentâneo que procuravam. Assim, como em A Ghost Story, o foco é o instropecto, tornando a quietude co-protagonista da história. São filmes calmos, que enganam à primeira camada, oferecendo muito a ser dito mesmo que as cenas contem com uma porção generosa de vácuos, os vazios sendo sentidos e não falados.
The Leftovers – Os Deixados para Trás, livro publicado em 2011 por Tom Perrotta, busca no luto o pontapé de sua trama. Sem mais nem menos, 2% da população some do Planeta Terra, num evento que muitos acreditam ser o Arrebatamento. Ao invés de solucionar o mistério do milênio, o autor foca naqueles que ficaram por aqui. Em uma escrita densa, despretensiosa e muito envolvente, a obra é uma janela para a psique humana. Retratos sinceros são pintados, com abordagens distintas para processar essa perda gigantesca. O banal se transforma no extraordinário, pequenos detalhes protagonizam dor imensa, mas o autor se prostra inerente ao tema que defende: toda reação é válida.
Falei tudo isso para chegar em um ponto central: ainda não sabemos o que fazer com todo esse amor engarrafado. O choro abafado no travesseiro que não encontra endereço físico ou caixa postal disponível, o nosso medo de encarar o imprevisível e o frágil. Escolhi escrever sobre A Ghost Story por alguns motivos. Por ter assistido num momento tão ímpar da minha jornada aqui, por conseguir me enxergar nos noventa e dois minutos, inclusive embaixo do lençol branco. E por ser um filme tão poético e despretensioso, que brinca com a morte e o apego tão vorazmente que assusta.
O pôster sugestivo de uma aventura de horror engana, mas é uma mentira do bem. A Ghost Story é uma fábula sobre o passar do tempo, sobre o pessimismo e sobre o nosso tamanho no Universo. Nada importa, mas tudo importa. E acaba sendo mais um longa que não soube lidar propriamente com o luto, pois não existe jeito disso ser feito. Assim como o amor, força motriz de nós humanos, a mágoa só é passada quando sentida. E, enquanto filmes assim forem feitos, nós sentiremos tudo.
Que linda e profunda reflexão … Vitor Evangelista, parabéns … você sabe tocar nossa alma.
Emocionante seu texto. A altura do excelente e sensível filme. Obrigada por compartilhar.