Endtroducing… é o disco que redefiniu gêneros músicas na década de 90 e ainda hoje tem muito a mostrar para os nascidos pós música digital.
Adriano Arrigo
Houve uma época em que se falava de boca cheia a quantidade de gigabytes que se possuía em uma mídia digital. Hoje, o brado do materialismo digital foi suprido por uma conta premium no Spotify. Há algo a se pensar nesse processo; porém, antes é de saber que a experiência proporcionada pela música independe dos meios pelos quais ecoa.
Quer dizer, quem ouve música hoje via streaming tem as mesmas chances de alcançar tantos mundos quanto aqueles que rebobinavam fita com caneta esferográfica nos anos 80. Até os saudosistas devem reconhecer que o que é passível de mudança, nesse caso, é a forma que se lida com todo o material disponível hoje que, sem dúvidas, é mais facilmente encontrado na Internet.
Provavelmente, Joshua Paul Davis, produtor londrino, não tinha uma conta no Orkut para poder acessar a comunidade de discografias, muito menos, em 1996, encontrar pérolas músicas no Napster. Seu garimpo – um pouco saudosista, é verdade – por vinil e CD’s é anterior aos anos dourados do download. Há 20 anos, Davis buscava suas músicas nos porões mais sujos e escondidos de Londres.
Por muito tempo, ele colheu manualmente timbres, samples, batidas e texturas dentro de vinis de estilos como soul, psicodelia, jazz, hip-hop, dance e todos as segmentações que podem ser citadas. A partir disso, Joshua Paul Davis elevou seu nome como DJ de festa universitária para o mundo; nascia, de fato, DJ Shadow e sua magnum opus, o Endtroducing….
Em Endtroducing…, DJ Shadow repensou e, consequentemente, recriou a produção essencialmente instrumental até meados de 90. Porém, é de se saber que sua tarefa de copiar+colar não é nada inovadora, mesmo levando em consideração o mundo pré-Internet. O hip-hop, aliás, muitos anos antes, já era o principal responsável pela curadoria de um extenso número de sons. Mas a capacidade de Shadow de juntar as peças mais obscuras da música majoritariamente instrumental é notável: consegue uma linha heterogênea, sem perder a coesão musical em apenas um único disco.
Hoje, podemos ver claramente como o álbum estava a frente de seu tempo. Com pedaços de sons, repetições e loops, o primeiro disco de Shadow mais se assemelha a um refinado compilado de material musical que antecipadamente jogava com o futurista mundo pós-digital. Após a revolução CD-MP3, há de ser fácil buscar, copiar, colar e, por fim, criar; mas como explicar o exímio resultado de Endtroducing…?
Shadow desenterrou peças instrumentais que, até então, poucos sabiam da existência. Aliás, mesmo que haja junções e escolhas de peças diferentes entre si, DJ Shadow talvez tenha construído seu próprio quebra-cabeça. O subgênero da música eletrônica chamado de trip hop – música ambiente com batidas de hip hop – é creditado aos seus primeiros singles, quando era DJ de festa de faculdade. Não obstante, na década em que Endtroducing… foi lançado, o trip hop ganhou força com artistas como Portishead, Massive Attack e Dj Krush, grupos que tiveram seus ápices na época de Endtroducing….
Embora o disco de Shadow gire predominantemente em torno do trip hop alçados em batidas de controladores de música (MPCs), cada faixa do disco é uma peça única. A riqueza vai além de simples recortes musicais. Por exemplo, a excelente “Changeling”, é finalizada com vozes sobrenaturais do filme de terror Príncipe das Sombras. Porém, não é algo risível ou hermeticamente intertextual ao ponto de só os fãs de John Carpetenter entenderem: Shadow se vale da experiência com a música. “Changeling” tem sua atmosfera desenhada através de batidas de MPCs alternadas com outras arestas que a ligam a instrumentos influentes no álbum – tais como saxofones de pequenas peças desconhecidas do jazz – conduzindo o ouvinte a ir mergulhando em outras camadas desconhecidas que soam ora sensuais, ora cósmicas.
Não obstante em se manter original, há sob tudo sua complexidade. Na experimental “Mutual Slump”, Shadow dribla as batidas dos MPC com elementos orientais que dão pequenos golpes, copiados aqui de Björk. Em “Stem” (que depois foi divida em 4 partes), há a mistura de estilos que vão desde um punk feitos a base de MPC – seria o início das bases do digital hardcore?) que, posteriormente, somados a calmos violinos, parecem embalar uma batalha dentro de trincheiras.
Mas nesse invólucro de originalidade e complexidade, o rito da experiência de Shadow se destaca. “Organ Donor”, por exemplo, mostra a capacidade de Shadow de montar quebra-cabeças aparentemente desconexos: soma-se a Disco italiana do pioneiro Giorgio Moroder com batidas do hip-hop. A belíssima e etérea “Midnight in a Perfect World” – uma peça onírica em que seu sample original é inspirado em uma obra do poeta William Blake – constrói um mundo paralelo convidativo a transcender as questões sobre os limites de gêneros musicais e, principalmente, de destruir conceitos de bom e ruim, se são agradáveis ou não.
Fica claro que Endtroducing… tem a habilidade de mostrar que música é música, e não há como diferenciá-las por estilos ou trancá-las no tempo. Shadow comporta-se como um mago habilidoso, e dentro do seu caldeirão musical, qualquer sobra não é desperdiçada. Prova é o fechamento do disco, “What Does Your Soul Look Like (Part 1 – Blue Sky Revisit)”, que faz parecer que um scratch é essencial a qualquer produção de jazz.
São inúmeras as qualidades de Endtroducing… O disco é um apanhado de ritmos e texturas ecléticas que poderia servir de base musical para diversas matrizes musicais, que pode ir, sem medo, de Tim Maia até Grimes.
Moderando as batidas desconexas e quebradas e ponderando a montagem lógica musical, Endtroducing… é como um cérebro cheio de sinapses alinhadas e conexas que coloca as técnicas acima das ferramentas que usufrui. Em pleno 2016, faz jus de ser compreendido para nos lembrar que música não se acumula, está liberta de gêneros e que necessita, obviamente, ser experienciada.