O japonês Junji Ito e o italiano Tiziano Sclavi produzem quadrinhos de horror de maneiras bem distintas. Enquanto um explora conceitos, o outro se destaca pelas personagens carismáticas. De qualquer forma, ambos são mestres da imagem.
Lucas Marques
Primeiro, um recente causo: na madrugada do último dia 31, Dia das Bruxas, meu vizinho de quarto bateu em minha porta para questionar se era eu que tinha visto um gatinho preto em casa. Respondi que sim e ele falou “então olha isso!”, desocultando das costas um desenho feito com traços grossos em um papel de caderno já empoeirado e rasgado. A imagem me gelou a espinha de primeira vista. Era um gatinho desenhado com giz de cera preto, as formas tão tortas que poderiam ser mesmo de autoria de uma criança, mas com alguns detalhes que só poderiam ser feitos por um jovem ou adulto que sabe o cânone de tal coisa: dentes e orelhas pontiagudas; olhos elípticos com o preto interno também elíptico, mas invertido; calda em espiral.
“Cê tá zuando, né? Foi você quem desenhou”, perguntei ainda meio sem saber o que tirar daquilo. Ele disse que não, que tinha achado na frente da porta de casa. Insisti mais, porém não fora ele quem rabiscou o gato. Não é do feitio dele e mesmo assim praticamente ninguém realmente se importa com Dia das Bruxas por aqui a ponto de conceber uma travessura dessa. Ainda mais para alguém que, se não tivesse o especial do Persona, não estaria aí para a data.
Quem é o autor? Como diabos isso foi parar em casa? De noite tratei o caso com uma pequena dose de ironia (muito para esconder o medo) misturada com especulações místicas. Na luz do dia já tomei um postura mais cética, mas não menos interessada. O que se tira de objetivo de toda essa história é a capacidade que desenhos têm de não só nos assustar, mas passar algo do mistério que pode ser sentido mas nunca completamente revelado. E isto é parte do que é a essência do bom terror nos quadrinhos – o assunto deste texto -, exemplificados por duas escolas de quadrinhos: a japonesa/mangá de Junji Ito e a italiana/europeia de Tiziano Sclavi.
Uzumaki – A Espiral do Horror
A cauda do dito gato formava uma espiral. Por um momento imagino, sem muito sucesso, o tipo de loucura que o mangaká de horror Junji Ito extrairia deste fato. Talvez a cauda em espiral passasse batido se não estivesse imerso na obsessão pela forma que é Uzumaki, mangá de Ito em 19 edições publicados na revista Big Comic Spirits entre 1998 e 1999.
A espiral possui diversos significados em diversas culturas. Os estudos matemáticos revelaram a proporção áurea, presente de forma incrível em toda natureza, algo que a arte conseguiu de certa forma captar e exprimir, mas sempre um mistério metafísico. A espiral é uma metáfora potente tanto da evolução cíclica, quanto da decadência inalterável. Junji Ito explora à exaustão esses e muitos outros conceitos sobre a forma, a ponto de uma só ideia parecer contínua: a capacidade da espiral de sugar a atenção das pessoas ou, simplesmente, sugar as pessoas.
Ito, quando escreveu Uzumaki, já estava “sugado” pela espiral, em estado obsessivo. Assim como manda um dos formatos do mangá, a obra possui uma história maior formada por capítulos com começo, meio e fim. Como constantes em toda narrativa está a protagonista, a colegial Kirie Goshima, sua família e namorado, assim como a cidade de Kurōzu-cho, onde estão acontecendo fenômenos bizarros e violentos envolvendo espirais.
O autor opta por atribuir pouca importância aos protagonistas, usando-os como fio condutor – uma mistura de observadores e vítimas – para explorar ideias tão absurdas como pessoas-caracóis, grávidas mosquitos e galáxias assassinas. O destaque dos conceitos em relação ao desenvolvimento das personagens não é nenhum demérito. Ito sempre é direto e logo quando termina um estudo em forma de horror sobre a espiral, o põe de lado e começa outra ideia. De qualquer forma, é uma alternativa mais sincera do que a baboseira sentimental travestida de desenvolvimento narrativo que é Walking Dead e outros comics estadunidenses.
Embora esses conceitos sobre espirais parecam desconexos – até mesmo de um suposto propósito maior, divino, desta forma geométrica -, eles fazem sentido numa narrativa que passa a sensação, capítulo após capítulo, de uma queda helicoidal no mistério. O horror de Ito é delicioso porque, mesmo sendo fácil decifrar o final e o ponto de virada da maioria das edições, a surpresa das melhores páginas já é uma mecânica por si própria. São aquelas páginas que você bate o olho e logo inclina o pescoço para trás, exclamando um “ooh” seguido por uma risadinha meio anasalada de incredulidade. Você achou que estava imune porque as palavras antecipam o horror, mas estamos falando de quadrinhos e Junji Ito é um mestre do terror pictórico.
Tome como exemplo a mencionada história das pessoas-caracóis que funciona em uma estrutura já bem conhecida do entretenimento, na qual a transformação se efetua lentamente a cada dia. Observar um estudante se metamorfosear em um molusco gigante tem algo de repulsivo e deleitável que só intelectos grotescos como David Cronnenberg, de A Mosca (1986), conseguem representar.
Dylan Dog – História de Ninguém
Se o mangá de Junji Ito tira o enfoque das personagens em benefício da exploração à exaustão de conceitos, Dylan Dog tem o DNA europeu que segue uma proposta diametralmente oposta: protagonista carismático com um set de peculiaridades que estampa o nome da revista (Tintim, Martin Mystére, Tex); horror dosado com humor e sensualidade; há mais explicações e investigações do que a expressão pura do mistério.
Para quem não conhece, pense Dylan Dog como um John Constantine com um teor mais leve, com menos bruxaria e menos tristeza. Ele mora em Londres e sempre está usando calça jeans com camisa vermelha e paletó preto. Tem um leque invejável de peculiaridades detetivescas, em destaque o Clarinete, que toca para se concentrar, e o ajudante Groucho, que é Groucho Marx. Sério, é a personagem do cinema simplesmente transportada para os quadrinhos. Curiosamente, o italiano Tiziano Sclavi o criou em 1986, dois anos depois da primeira aparição de Constantine nos quadrinhos e dois antes do bruxo receber uma revista própria.
Dog foi o principal produto da tradicional editora italiana Bonelli Comics no final dos anos 1980 e na década de 1990. No Brasil foi publicado por 4 editoras, hoje os direitos pertencem a pequena Lorentz. Mas o que torna Dylan Dog interessante, ainda mais nos nossos tempos nos quais a cultura dominante é formada por séries protagonizadas por personagens excêntricos, irônicos e resolvedores de problemas?
A resposta está no apurado olhar cinematográfico de Tiziano Sclavi que, mesmo nas histórias menos inspiradas, proporciona dinamismo e doses iguais de humor, mistério e desenvolvimento de personagens. Em resumo, 100 páginas perfeitas para ler em uma tacada.
Para quem quiser um exemplar de Dylan Dog em sua máxima potencialidade procure por “História de Ninguém”, revista número 35 da série da editora Mythos. A história concilia as habilidades narrativas de Sclavi com uma trama que pende mais para a ficção-científica do que horror propriamente. Em suma, é uma versão do tropo do “sonho perpétuo. A trama é fluída e não tem medo de se perder em inconscientes e mundos paralelos. Às vezes pode não fazer muito sentido cientificamente, mas quem liga? São 100 páginas de quadrinho com Q maiúsculo. Uma daquelas pequenas pérolas que você só encontra escondido em sebos.