César Cabral
Cem Anos de Solidão, ganhador do 79º Nobel de Literatura, em 1982, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, reúne acontecimentos reais e ficcionais – incestos, frieza, tapetes voadores, guerras civis, fantasmas e crianças com rabo de porco – que nos causam estranhamento. É um romance do gênero realismo fantástico, ou seja, uma história em que elementos mágicos, irreais acontecem e são aceitos de forma natural.
O livro conta a história da família Buendía, fundadora da cidade de Macondo, na Colômbia, e suas sete gerações de membros com nomes iguais. A trama, que é narrada durante cem anos, conta sobre o apogeu, declínio e uma maldição da família, simbolizado pela sua casa e a forma com que cada familiar ajudou nesse processo. Cada membro da família tem o seu destino já traçado de acordo com seu nome. Os inúmeros Aurelianos tendem a ser solitários e autoritários e os inúmeros José Arcádios a serem mais desprendidos e a morrerem de um jeito um tanto quanto misterioso, inexplicável.
Na narrativa, absurdos são aceitos sem qualquer estranhamento, até os nossos absurdos reais. García Márquez usou muito de sua vivência – produto da realidade latino-americana, mas em especial a da Hispanoamérica – para escrever aquilo que se tornaria Cem Anos de Solidão . O misticismo das Américas sempre fez-se presente. Em seu discurso para o Prêmio Nobel, Gabriel cita muitos casos que parecem ter sido inventados pela sua própria imaginação, e que poderiam muito bem ter sido postos em seu livro: o general e ditador mexicano António Lopes de Santa Anna, que fez um funeral para sua perna direita (perdida na Guerra dos Pastéis); o genocídio de camponeses por um ditador salvadorenho, o general Maximiliano Hernández Martínez , que além de genocida, foi inventor de um pêndulo que supostamente revelava se algum alimento havia sido envenenado; e a incrível cogitação de se construir uma ferrovia no Panamá usando trilhos feitos de ouro. Isso sem contar outros casos como guerras civis, diversos golpes de estado, ditaduras execráveis e milhares de refugiados cujo número é maior que algumas populações europeias.
Um dos elementos mais lúcidos da história, e a meu ver uma das personagens em que nada de estranho lhe é habitual, é Úrsula Iguarán, matriarca da família. Ela poderia muito bem ser considerada a protagonista em detrimento de outros, e até certo ponto quem afirma isso está certo, já que ela torna-se o pilar principal da ordem. Úrsula é a mantenedora do status quo durante muito tempo. Porém, o livro não gira em torno dela – as coisas não acontecem para ela única e exclusivamente, como forma de expiação. Úrsula faz parte do universo e é influenciada pelos seus acontecimentos, reagindo ao que estiver a seu alcance, assim como os demais. Em outras palavras, o destino determinado.
O fato de os personagens fazerem parte do universo, e não o universo ter sido criado para os eles, faz com que a história ganhe uma característica polifônica, isto é, cada personagem tem destaque e importância em algum momento. Isto gera uma falta de trama central clara para quem não se preocupou em ler a sinopse.
Ademais, a história se assemelha à mitologia grega em questão de riqueza de detalhes – e até mesmo coisas “anormais” – como por exemplo a Guerra de Tróia e a Odisseia. Isso mostra que Gabriel soube tecer muito bem os diversos acontecimentos, interligando-os mesmo depois. Não existem acasos, tudo é “a causa ignorada de um efeito conhecido”, como disse certa vez Voltaire. Todas as causas têm suas consequências, que eventualmente tornam-se causas e assim por diante. Aureliano, o primeiro, jamais teria se tornado um velho coronel solitário se não tivesse sido afetado pelas trinta e duas guerras que promoveu, após discutir sobre política com seu sogro sobre a tensão entre Conservadores e Liberais que estava acontecendo naquela época.
José Arcádio Buendia proferiu “este é o grande invento do nosso tempo” ao referir-se ao gelo que os ciganos levaram a Macondo. Descontextualizada, tal frase pode muito bem ser utilizada para se referir a Cem Anos de Solidão. García Márquez juntou o mítico com o real, criando um dos mais importantes livros latino-americanos e muito merecedor de seu Nobel de literatura. E a nós, da realidade horrenda, não temos ideia de quanto tempo durará nossa maldição não proferida.