Guilherme Veiga
Estude muito, leia livros de negócios, invista em você mesmo, tenha educação financeira, trabalhe enquanto eles dormem. Com a proliferação dos coachs tal qual uma doença moderna, o discurso (e a falácia) da meritocracia estão cada vez mais em voga e iludindo milhões que acreditam que, ao invés de degenerar, o trabalho dignifica o homem.
No papel, nas palestras e nos podcasts, ele é lindo, mas também demonstra como uma certa parcela está totalmente descolada e alheia à sociedade da qual faz parte e das mazelas que ela carrega. É a partir desse cenário que Uma Vida de Ouro, documentário presente na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, busca traçar um estudo de como a busca por uma vida melhor funciona na prática em uma região devastada pela miséria.
A obra conta a história Rasmané, um jovem de 16 anos que trabalha no garimpo artesanal da região de Bantara, em Burkina Faso. A produção é capitaneada por Boubacar Sangaré, diretor natural do Mali que aqui estreia em longa-metragens tratando de algo que lhe é muito próximo. Além de cineasta, Boubacar também é formado em Direito e, por mais que essas duas profissões muitas das vezes não conversem entre si, fica nítido como ele advoga por uma causa e desenha seu argumento com as câmeras.
Rasmané tem a idade perfeita para estrelar um coming of age, porém o longa faz questão de exaltar, retratando sua vida no campo de mineração, que parte importante de sua vida foi usurpada, ou sequer lhe foi dado o direito de vivê-la. O adolescente age, fala, se porta e tem o comportamento de alguém que há décadas está calejado pela jornada de trabalho, mas que, numa representação nada fantasiosa de Benjamin Button, está em um corpo de criança.
Essa filmagem é feita de forma muito passiva. O mensageiro não vai até a câmera explicitar a crítica como já estamos acostumados em documentários. Pelo contrário, usando do Cinema direto, Uma Vida de Ouro, através da fotografia de Isso Emmanuel Bationo, nos coloca como intrusos se esgueirando por aquela vida, como moscas que pairam pelo local. Desse modo, a narrativa diminui completamente o ritmo e nos coloca para contemplar a situação, seja nos planos tortos e não convencionais para retratar as pessoas, ou nos planos abertos para exaltar a paisagem que de tão inóspita, se torna bonita. E só quando também desaceleramos, que conseguimos pensar e captar a mensagem sem qualquer direcionamento da produção, deixando seus personagens puramente humanos, em um ambiente que a humanidade não tem peso e valor nenhum.
Essa escolha criativa incomoda até certo ponto e nos coloca no limiar de sempre pensar que aquilo, na verdade, é uma ficção sobre algo que ocorre no território africano, como foi Capitão Phillips e Beasts of No Nation. De fato a obra instiga tal dúvida ao máximo, principalmente com as tomadas extremamente bem filmadas nas incursões embaixo da terra, que conseguem transmitir todo o sufocamento da situação, sem abrir mão de uma composição muito bem elaborada. Porém, toda a jornada guiada pelo documentário tem uma recompensa no final.
Durante grande parte da produção, se assume que ela seguiu uma abordagem para contar a história. No entanto, a parte final serve para subverter a própria obra e trazer uma nova ótica para si. Se antes ela optava por não se envolver com seus personagens, agora está mais próxima do que nunca – e é aqui que percebemos que todo o cuidado e primor do documentário não era resultado somente do talento da produção, mas sim por conta de Sangaré também ter sido um adolescente do garimpo no passado. Se antes, o foco era falar com adolescentes da região de Bantara, especialmente Rasmané, que tiveram sua juventude transviada pelo ouro, agora ele conversa com cada um de nós, que precisou vender um pedaço de sua alma para um sistema.
Gonzaguinha já dizia que “fica com a pureza e a resposta das crianças” e é através das respostas delas que Uma Vida de Ouro evidencia que, nesse planeta perdido e assolado por (e pela falta de) dinheiro, algumas coisas brilham mais e tem a pureza mais valorizada do que a própria infância. Porém, o documentário não perde tempo remoendo culpa, pois o mundo cão é implacável e há sempre mais coisas para se preocupar, há sempre alguém para nos apontar o dedo.
Por isso, a obra conscientemente opta por apontar a câmera, sem julgamentos e sem indução, como se fosse o espelho mais nítido de uma parcela que nunca sequer teve um holofote para si. A produção é um zoom que alcança a alma e, através do microcosmo de seu documentado, consegue discutir um macro que importa a todos: o viver. E na pureza da criança que sabe que nem tudo que reluz é ouro, que entendemos que a vida, apesar dos seus contratempos, é cruelmente bonita.