Bárbara Alcântara
Em 1996, o mundo assistia, maravilhado, ao mergulho que o jovem Mark Renton (Ewan McGregor) dava na “pior privada da Escócia”, em busca dos supositórios de ópio que havia introduzido em (mais uma) tentativa de abandonar o vício em heroína. Esse foi Trainspotting: as epopeias de quatro amigos de infância numa Edimburgo psicodélica, passando de bar em bar (e biqueira em biqueira), afogando em copos e agulhas as desilusões e insatisfações com o ideal de vida que lhes era enfiado goela abaixo.
Mais de duas décadas depois do lançamento do primeiro, a obra foi revisitada por Danny Boyle. Batizada de T2: Trainspotting, a continuação do longa, que estreou no Brasil na última quinta-feira (23), mostra Rent Boy (Ewan McGregor), Begbie (Robert Carlyle), Sick Boy (Jonny Lee Miller) e Spud (Ewen Bremner), agora quarentões, sofrendo as consequências de todas as loucuras vividas aos 20 e poucos anos – e repetindo muitas delas, entretanto sem o mesmo glamour de antigamente.
Quando a sequência do icônico Trainspotting foi divulgada na mídia, as opiniões logo se dividiram. Ao mesmo tempo que o trailer causava frios na barriga de ansiedade, era difícil pensar em uma continuação digna para um filme tão bem aceito pela crítica, e que ditou o tom da juventude por boas décadas. Ou seria um desastre, ou então o diretor emocionaria os fãs mais uma vez. É claro que a maior parte das opiniões pendiam para o lado mais pessimista, e talvez tenha sido isso que acabou fazendo com que a estreia de 23 de março surpreendesse os espectadores (e rendesse classificações razoavelmente boas pelos críticos).
Enquanto o primeiro filme, adaptação cinematográfica do livro homônimo de Irvine Welsh, tinha como carro-chefe a relação intensa dos jovens com as drogas e com a falta de perspectiva de futuro, o segundo, também baseado na obra de Welsh, Porno, mostra todas as consequências desse cotidiano desregrado. O protagonismo das drogas é substituído por uma certa frustração por não terem “escolhido a vida”, mas também não terem alcançado nada de grandioso.
“Você não está ficando mais novo, Mark. O mundo está mudando. As músicas e até as drogas estão mudando.”, diz Diane, durante uma conversa no primeiro filme. Depois de uma oportunidade seguida de uma traição, nas palavras do próprio Spud, Renton se joga de cabeça nessa mudança: larga as drogas, muda de país, se casa e arruma um emprego. Agora, aos 40 e poucos anos, ele começa a viver um período complicado. Relembra melancolicamente do seu passado e se arrepende amargamente de erros cometidos. Em busca de respostas ou de simplesmente reviver determinadas emoções, volta para Edimburgo.
Em T2, os protagonistas perderam o encanto dos jovens junkies e estão passando pela clássica crise da meia idade: em uma mistura de nostalgia com um tom muitas vezes deprimente, quatro personagens confrontam o passado e lutam incessantemente contra o tempo. Afogam as mágoas tentando viver as experiências novamente; isso inclui virar madrugadas em mesas de bar, frequentar baladas e se rodear de jovens, visitar lugares que marcaram a juventude turbulenta ou até mesmo trocar os vícios antigos por novos, como praticar corridas, esportes radicais ou qualquer outro tipo de atividade que faça com que eles se sintam vivos.
Boyle não dá lições de moral ou cria excessos de sentimentalismo. Muito pelo contrário, mostra de forma prática as consequências do passado. Cenas se repetem, como o sorriso de Mark para o motorista ao ser atropelado por um carro, ou então quando ele se senta na mesa para o café da manhã com os pais. Mas elas são reinterpretadas: na primeira, Renton não está fugindo de policiais e, sim, de seu amigo Begbie. Na segunda, há apenas a sombra de sua mãe, que faleceu. Por mais que as tomadas estejam repletas do senso de humor clássico do primeiro filme, apresentam também a dureza reservada pela passagem dos anos.
O que há de comum em ambas as obras é que os personagens continuam viciados em algo. Seja esse vício a heroína ou as longas corridas, eles continuam utilizando-o para preencher algum tipo de vazio existencial, mas sem questionar mais profundamente qual a causa desse sentimento.
A trilha sonora foi outro detalhe de Trainspotting que rendeu muitos elogios. Ela conseguiu capturar a essência da juventude dos anos 90 e, principalmente, a dos protagonistas. A cena inicial é indissociável da música de Iggy Pop e David Bowie, “Lust for Life”. Além disso, a presença de “Nightclubbing”, também fruto dessa parceria, provoca a sensação de noites varadas de balada em balada, sob o efeitos das drogas e bebidas. Blondie, Blur, New Order, Lou Reed, Underworld, todas essas escolhas espelham a realidade vivida pelos protagonistas que ainda guardam um certo conservadorismo do que ouviam quando mais jovens, mas tentam se atualizar e acompanhar a passagem do tempo.
No segundo, há o mesmo conceito na escolha das músicas. “Lust for Life” reaparece, mas dessa vez em um remix feito pelo Prodigy. Para os saudosistas, um problema. Entretanto, a opção por um remix demonstra apenas que os tempos são outros, que as coisas evoluíram e se modernizaram, mesmo que ainda guardem muito do que eram anteriormente. Blondie está presente mais uma vez, Underworld dessa vez com “Slow Slippy”, e The Clash. Mas as músicas mais antigas são intercaladas por uma trilha mais eletrônica, atual, assim como Boyle fez no primeiro.
O longa de 1996 continua sendo a obra prima de Danny Boyle. A sequência, entretanto, não deixou a desejar: capturou de forma madura e real o futuro dos personagens, sem esconder as derrotas e os momentos mais patéticos vividos por eles, que uma vez nos pareceram tão atraentes. No fim, o diretor consegue passar a mensagem certeira de que o tempo passa e as consequências chegam, tenha você “escolhido a vida” ou não.