Muito mudou entre os anos 80 e agora, mas a figura masculina erotizada continua engajante como nunca
Vitor Evangelista
Não há nada que um homem goste mais do que agradar e impressionar outro homem. Seja numa relação romântica ou apenas na amizade, a Arte explorou, desde o Batalhão Sagrado de Tebas até os garotos bobos de amor de Heartstopper, que eles compartilham esse fascínio, um senso de deslumbramento que os coloca no centro do universo. Quando foi lançado em 1986, o romance entre Maverick e Charlie em Top Gun: Ases Indomáveis era, à primeira vista, o único ponto de tensão no filme. Mas o produto final mostrou um subtexto extra.
Acontece que, na escola para os pilotos mais velozes do planeta, o protagonista sorridente e teimoso de Tom Cruise se choca com alguém que faz seu coração bater mais forte que os cachos dourados de uma Kelly McGillis na flor da idade. Iceman (Val Kilmer) representa um rival imbatível, entretanto, a camada abaixo da superfície revela uma tensão (e um tesão) incubado entre os militares. Quando jogam vôlei na praia, ou mesmo quando desfilam só de cuequinha branca pelos vestiários do quartel, Kilmer e Cruise não desgrudam os olhos um do outro.
Esse fator, provavelmente surpreendente até mesmo para o diretor Tony Scott, rendeu à Top Gun o título de filme gay. O filme mais não intencionalmente gay dos anos oitenta. Ou será que havia intenção? Afinal, a quem pertence O Babadook? A Arte, como meio de expressão e mensagem, serve propósito àqueles que a consomem, quer o significado seja idealizado por quem o criou, quer o contrário.
No caso de Top Gun, a questão do homoerotismo era tão presente no núcleo narrativo da obra que, para reafirmar a heterossexualidade de seu protagonista, o ideal americano de macho familiar, sadio e pronto para defender o país que ama, o filme rompe sua virgindade ao som da canção que imortalizou o amor sacana da década. Posteriormente vencedora do Oscar, Take My Breath Away ilustra com maestria o papel social do homem naquele ambiente: ele luta arduamente para ser recompensado pelo beijo caloroso de sua amada, à meia luz, banhados pelo azul e desnudos em uma cama de lençóis brancos.
Por definição, o homoerotismo se caracteriza pela relação erótica, sem ser necessariamente sexual e genital, entre pessoas do mesmo gênero, ou mesmo satisfação encontrada por meio de um objeto do mesmo gênero. No papel, a relação de Iceman e Maverick não passa de uma rivalidade banal, uma competição de egos e uma medição de testosterona. Na prática, a química dos intérpretes, aliada à direção calculada de Scott, sempre equiparando o desejo de posse ao de conquista, o público pôde muito bem enxergar um grau além do aparente retrato do mundano.
Oito anos se passaram até que Tom Cruise se metesse em outro projeto homoerótico. Dessa vez na pele de Lestat, o ator vivia um vampiro imortal que, na solidão da noite, busca a companhia de Louis (Brad Pitt), a quem trata com carinho e o gracejo de alguém apaixonado pela ideia de dividir o infinito com outro alguém. Em Entrevista com o Vampiro (1994), o diretor Neil Jordan adapta o clássico de Anne Rice abusando do erótico e do libidinoso. Expressando o desejo das criaturas da noite por meio de um texto polido ao ponto de soar como poesia de alta qualidade, Louis e Lestat são carne e unha.
Isso até que Claudia (Kirsten Dunst) entra na equação. A criança, amaldiçoada pelo vírus sanguinário em um momento de fraqueza dos protagonistas, se torna uma filha do casal, e se a relação a dois já passava por percalços, a três a situação azeda. Entre incêndios, jacarés famintos e o encontro com outro vampirão sexy (Antonio Banderas), o personagem de Brad Pitt é feito de gato e sapato pela luxúria.
Cruise, mais velho que o companheiro de trabalho, assume a figura do mentor/amante maduro, que abre o horizonte para o jovem, oferecendo-o a possibilidade de se deliciar com os sucos da vida. E se Top Gun tinha vergonha de expor o lado travesso da relação de seus brucutus, Entrevista com o Vampiro não se acanha ao lamber os lábios frente a devassa e apetitosa possibilidade de consumação. Ninguém precisa ouvir trocas de afetos melosos entre os vampiros, já que o subtexto, nascido da necessidade de explorar o amor homossexual e o desejo de poder entre monstros carnívoros, atravessa a sutileza e não passa despercebido.
Entre 1994 e 2022, o mundo mudou um bocado, e o homoerotismo passou de figurante para elemento principal das narrativas. E no contexto em que a Netflix domina gráficos de audiência e toma as rédeas das tendências, não tem produção que melhor exemplifique o assunto do que Elite. Nascida como uma parente distante de Rebelde e uma prima rebelde de Riverdale, a criação de Darío Madrona e Carlos Montero há muito abandonou a coesão e o cuidado para encher a tela com homens seminus se admirando nos chuveiros de Las Encinas.
Os assassinatos continuam no roteiro nada amarrado do seriado, que finalizou uma quinta temporada cada vez mais abraçando o dadaísmo na TV. Sem preocupação com arcos, ganchos, desenvolvimento de personagens coadjuvantes e um clímax digno da maratona de oito horas, Elite fez seu 2022 ao redor da tensão entre Patrick (Manu Ríos) e Iván (o brasileiro André Lamoglia), um casal improvável que atravessa tempestades e furacões até que se aceitem como o destino os prostrou.
Mas, antes de Patrick fazer qualquer um babar, Elite era dominada pelo fascínio que Ander (Arón Piper) provocava não apenas em Omar (Omar Ayuso), mas em qualquer um que o orbitasse. Polo (Álvaro Rico) se fascinou por Christian (Miguel Herrán), depois procurou refúgio na relação com o próprio Ander, figura máxima da tentação máscula. Isso até a chegada de Patrick, que enfeitiçou personagens e público, o que diminuiu ao passo que Iván pisou no colégio. Ciente de que seu elenco masculino gera mais engajamento que qualquer interação entre mulheres ou casal heterossexual, a produção da Netflix reconstrói seu universo ao redor do homoerotismo e do homossexual, já que nao faltam cenas picantes entre os garotos ao longo de todos os anos de exibição.
Importante entender, mais do que apenas criticar a evidente má qualidade de Elite nos princípios básicos de drama e roteiro, que a série nasceu, como já dito, na figura de uma repaginação de Rebelde, sem censuras. Na série mexicana, o público assistia o imperialismo heterossexual, onde o sexteto protagonista era categorizado em três casais, por mais que Giovanni (Christian Chávez) representasse, sem dúvida alguma, um homem queer, ou, ao menos, um homem que não tinha enlace romântico com Lupita (Maite Perroni), a única das meninas sem uma contraparte heteronormativa para fazer pose ao lado nos pôsteres e álbuns de figurinhas.
De um Giovanni trancafiado no armário para um Patrick assumido e aceito pela família e pela escola elitista da Espanha, muito melhorou na mídia e na sociedade que a consome. Mas o que une Top Gun, Entrevista com o Vampiro e Elite, para além da obviedade da tensão homoerótica? A resposta vive na origem deste texto: o fascínio e o êxtase de quem acompanha a trama pelo desenrolar de uma semente “proibida”, algo primeiramente tachado de errado mas que, se provado, floresce em emoção e sedução.
O homoerotismo sempre nos deixou de quatro pela força das narrativas, para além do mocinho encontrar a princesa e eles viverem felizes para sempre. Por vezes, o mocinho ia de encontro a outro mocinho, e eles nem sempre viviam no marasmo e na boa vida de suas contrapartes heterossexuais. Em Top Gun, Maverick leva Charlie na garupa, para longe da figura de Iceman. Em Entrevista com o Vampiro, Lestat e Louis ganham contornos de antagonistas, por mais que a paixão ainda resida no fundo do ódio. Em Elite, Patrick e Iván trocam afagos calorosos depois de presenciarem uma morte chocante, sem saber o que o amanhã reserva a eles. Tudo que nos resta é assistir.