Julio Cortázar publicou há 50 anos Todos os Fogos o Fogo, um dos principais livros de contos de sua carreira e da literatura argentina.
Lucas Marques
Quando da publicação de Todos os Fogos o Fogo, em 1966, Julio Cortázar era o escritor sul-americano de mais prestígio além-mar: três anos antes O Jogo da Amarelinha abalara a própria concepção de romance – já que os capítulos do livro poderiam ser lidos em múltiplas ordens-, e em 1966 o diretor cinematográfico Micheangelo Antonioni adaptara o conto As Babas do Diabo para a produção do clássico Blow-Up.
Criado nesta fase de experimentações literárias e da solidificação do chamado “realismo mágico latino-americano” – Cem Anos de Solidão, de Gabriel Gárcia Marquez, foi publicado em 1967 -, os oito contos de Todos os Fogos o Fogo transpiram a criatividade e a pluralidade dessa fase áurea de Cortázar.
O conto que inicia a obra, A auto-estrada do sul, já demarca a inventividade de Cortázar: motoristas e passageiros, diante de um congestionamento praticamente insolúvel em uma estrada francesa, encontram-se na necessidade de se organizarem para poderem viver enquanto o caminho não é obstruído. É uma história leve, engraçada, marcada pela hipérbole. O absurdo se dá pelas situações tipicamente cotidianas e urbanas, que passam a se tornar cada vez mais mundanas com o tempo, dramatizadas em bancos passageiros pelos grupos sociais complexos formados.
A auto-estrada do sul é um dos contos mais conhecidos do escritor e foi utilizado como premissa do filme Week-end à francesa, de Jean-Luc Godard. Assim como em uma representação de um auto, nomes são omitidos e as personagens são representadas por seus veículos e, algumas vezes, por suas ocupações sociais. Tal apego por esse mundo do absurdo, dos carros, que se constrói progressivamente na mente do leitor é imprescindível para o efeito da bela imagem final do conto.
Cortázar trata com igual acuidade A Saúde dos Doentes, cuja premissa poderia indicar uma simples farsa: os filhos, preocupados com a saúde frágil da mãe, se empenham em acobertar fatos trágicos. Para isso, um sistema complexo e mutável de mentiras é criado, que se torna cada vez mais ridículo pela ação do acaso.
O livro toma um rumo completamente diferente em A Reunião, um dos contos mais cultuados do escritor, que estabelece Esnerto Che Guevara como narrador, em um momento crítico da Revolução Cubana, empenhando esforços para chegar até as tropas de Luís (ou, mais precisamente, Fidel Castro). Che, com a mente assolada pela perda de seus combatentes e em estado febril, reflete sobre o propósito da luta e o motor que o faz seguir em frente; lembra-se do passado pouco distante, mas na mente remoto, como médico e tenta encontrar um “eu”.
O simbolismo religioso é sutilmente inserido no fluxo de pensamento de Che. Assim como Cristo, Guevara reflete sobre sua condição de humano, carnal, e o seu dever no mundo. O maior temor de Che é a morte de Luís, que o levaria a tomar todo o fardo da revolução para si. Não à toa, Che é “tentado” constantemente pela mente e janta um cordeiro antes do encontro com Luís.
Não tão lembrado como outros contos, Senhorita Cora é um dos pontos mais intensos do livro. Cortázar executa o experimento de alternar fluxos de consciência de narradores, surpreendendo o leitor quando em um ponto, vírgula ou palavra a narração muda de sujeito. Em suma, o conto se dá pelo conflito de três pontas: a mãe, que, pela primeira vez em 15 anos, precisa deixar o controle de seu filho para que se retire a vesícula; o menino, extremamente tímido e envergonhado dos mimos da mãe, que encontra o céu e o inferno na figura da jovem enfermeira; e a enfermeira, a “Senhorita Cora” do título, que é atormentada pelos cuidados da mãe e pelas dúvidas que tem quanto ao tratamento do menino.
O conflito psicológico entre o menino e a enfermeira – que poderia ser tratado apenas pelo viés das tensões da adolescência – manifesta fluxos de consciência complexos de ambos os lados. Há uma clara tensão sexual que não pode ser correspondida, uma relação de dominação que se altera por meio de palavras e ações. Os pensamentos da enfermeira são particularmente fortes, pois compreendem sentimentos de amor, pena e crueldade. É um duelo psicológico tão pesado que remete a Professora de Piano, de Michael Haneke, mas, claro, sem as cenas explícitas.
Os contos seguintes a Senhorita Cora – A Ilha do meio-dia e Instruções a John Howell – apesar de menores não são menos interessantes. Ambos compartilham de ideias características no realismo fantástico, identificáveis também na prosa de outros escritores. O primeiro trata de uma obsessão, a ilha que pode ser vista ao meio-dia do avião, que transforma completamente a vida segura da personagem. Na segunda o protagonista é levado, movido pela curiosidade, a encenar uma peça contra sua vontade; a ficção começa a se fundir com a realidade e questiona-se a veracidade do mundo.
Uma das principais críticas a escrita de Cortazar é a repetição de conceitos utilizados por ele e “companheiros” da época – é só lembrar de O Aleph e Tlon, Uqbar e Orbis Tertius de Borges -, entretanto esses contos mostram que a originalidade está nos detalhes, na construção de imagens; habilidade esta em nível de maestria nos dois últimos contos, Todos os Fogos o Fogo e O Outro Céu.
No conto que dá nome ao livro, a narrativa também se alterna abruptamente em dois focos, mas agora de dois pontos de tempo distintos: a Roma clássica e a França contemporânea. No início, a luta fatal do gladiador agendada pelo pro cônsul e a conversa ao telefone entre dois (ex)amantes parecem não se encaixar, pelo menos não da forma convencional de “espelhos” da literatura. Trata-se de uma das histórias mais antigas da humanidade: da paixão, do pesar, do fogo que consome, literalmente ou não, tudo.
Há de se admirar as imagens, reais e claras, dos olhares entre o gladiador, o pro cônsul e sua esposa, e do termino por telefone entre os dois contemporâneos. Tão rico em imagens é também O Outro Céu, último conto da obra, que curiosamente não possui elementos fantásticos e é narrado linearmente. Nele somos introduzidos as memórias de um parisiense que habitava dois mundos: um em que cumpria o papel de bom filho e trabalhador da bolsa, de noivado arranjado; e outro das galerias da cidade, das prostitutas, das figuras estranhas. O céu do título, como um belo símbolo, é a imagem observada através dos vidros, sujos, dos tetos das galerias. A liberdade era encontrada, veja só, em um local enclausurado.
Entretanto, como nada em Cortázar se dá facilmente, alguns nomes de pessoas e lugares argentinos são estranhamente inseridos na trama parisiense. Deste modo, resta ao leitor reinterpretar todo o conto sob a óptica do período ditatorial da Argentina. O Outro Céu, situado nas últimas páginas, é uma demonstração de como a escrita de Cortázar é variada em tema e estilo. Não à toa Todos os Fogos o Fogo comemora 50 anos em 2016 com a chama das velas brilhantes, difíceis de serem apagadas.