O saxofonista Marshall Allen começou a tocar com o pianista Sun Ra no fim dos anos 50. E assim segue até hoje, mesmo após a morte do mentor da Arkestra, um dos grupos mais cultuados do jazz de vanguarda, em 1993. Depois do também saxofonista John Gilmore, outro contribuidor fiel à obra de Sun Ra falecido em 1995, Allen mantém a Arkestra na estrada desde então. O espetáculo Outros Espaço: Sintonia Cósmico Sônica, que se deu na quinta-feira passada (3) no auditório do SESC Bauru, sinaliza a vontade de transmitir a ideologia musical e cósmica de Sun Ra para novas gerações de músicos e público.
A banda escolhida para a ocasião é um verdadeiro dream team: além de Danny Thompson, Knoel Scott e Elson Nascimento, companheiros de Allen na Arkestra, Juçara Marçal e Thiago França (Metá Metá), Tulipa Ruiz, Guilherme Granado e Marcos Gerez (Hurtmold), Thomas Rohrer e Paulo Santos (Uakti) e Rodrigo Brandão promoveram uma sessão de improviso de cerca de uma hora para o auditório lotado. A ideia surgiu de uma apresentação de Brandão com Allen no Festival Moers, na Alemanha.
A Arkestra chegou ao Brasil na quarta-feira (2), um dia antes da apresentação no SESC Bauru. Logo, não houve tempo para ensaios, o que, em se tratando de veteranos do jazz experimental, não é exatamente um problema. Sentados, Marshall Allen, Danny Thompson e Knoel Scott primeiro assistiram aos desdobramentos do resto da banda para então iniciarem suas contribuições. Allen, que completou 95 anos em maio, demorou alguns minutos para se munir de seu saxofone, preferindo a princípio tocar um pequeno teclado posicionado à sua direita.
Logo no começo do espetáculo, Brandão, espécie de mestre de cerimônias da noite, fez questão de destacar que naquela noite banda e plateia eram um só. Enquanto Juçara e Tulipa cantavam, ele se comunicava com o público através de monólogos, o primeiro deles elencando efemérides do dia 3 de outubro. A ausência de uma bateria propriamente dita privilegiou ritmos ritualísticos, bem como deu mais espaço para o trio de metais. Interessante notar que a única menção direta a Sun Ra foi a citação ao cântico da antológica “Space is the Place” por Juçara e Tulipa. Mas a obra do multiinstrumentista norte-americano fez morada no palco e na mente de cada um dos 12 músicos presentes.
O espaço é o lugar
Nascido Herman Blount no dia 22 de maio de 1914, o autobatizado Le Sony’r Ra nunca foi afeito a biografias organizadas, o que contribuiu para toda a mística em volta de sua figura. Ele começou a tocar piano ainda na infância, mostrando talento precoce. Deu os primeiros passos rumo à carreira profissional na adolescência, e chegou a estudar música na faculdade. Mas tudo mudou quando ele supostamente foi abduzido por alienígenas e levado a Saturno. Lá, extraterrestres ordenaram que Sun Ra interrompesse seus estudos porque o mundo entraria em colapso.
Fato ou mitologia, pouco importa: nasceu aí Sun Ra, o idiossincrático visionário do jazz de vanguarda. Entre 1957 e 1990, ele e a mutante Arkestra gravaram cerca de 70 álbuns, a maioria lançada de maneira independente pela El Saturn Records (todos estão disponíveis no Bandcamp). Sun Ra também é poeta publicado no mundo todo. Sua maior influência na cultura pop talvez sejam suas contribuições para o afrofuturismo, movimento estético e filosófico que mescla ficção científica e misticismo egípcio.
Toda a discografia do pianista conta com referências ao espaço, que são também presentes nas roupas usadas pela Arkestra até hoje. Segundo artigo publicado no The Guardian em 2014, esse conjunto de ideias “comunica perfeitamente a confusão e a alienação da experiência masculina negra na América do século 20”. Sun Ra, nascido no sul dos Estados Unidos durante a segregação racial promovida pelas leis Jim Crow, não se considerava um ser desse planeta – e tinha motivos para isso.
Na noite do dia 3, a Arkestra trouxe doses gigantescas de abstração para o atento público do SESC. Rodrigo Brandão até mesmo incentivou que todos se levantassem de suas cadeiras e fizessem o que bem entendessem; os presentes, porém, não estavam tão desinibidos. Bastava observar todos aqueles músicos em ação, músicos de bagagens tão diferentes em comunhão explícita, arquitetando labirintos musicais com a liderança tácita de Marshall Allen. Ao fim da jam, as luzes se acenderam e Brandão citou cada músico presente, abrindo alas para um solo derradeiro de Marshall.
Saindo do SESC, a impressão era de que o tempo-espaço havia sido irremediável e felizmente distorcido. Ainda assim, a imagem que ficou foi a de Allen no canto do palco, atendendo aos fãs e comendo uvas verdes. O espaço nunca foi tão acessível.