Nathan Sampaio
O herói, na definição clássica da literatura, é aquele capaz de se sacrificar pelo bem comum e mudar o cenário em que está inserido. Porém, mesmo tendo qualidades louváveis, ainda assim é preciso que existam falhas e defeitos em sua personalidade para torná-lo mais humano e realista. Não há nenhum personagem que se encaixe tão bem nessa definição quanto o Homem-Aranha, aquele que em sua origem aprendeu que “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades” e na atualidade se tornou um símbolo do heroísmo. Poucas mídias conseguiram transpor essa sensação tão bem quanto o jogo Spider-Man, que completa cinco anos em 2023.
Após oito anos de atuação como Homem-Aranha, dessa vez Peter Parker terá que enfrentar a gangue liderada pelo Senhor Negativo, que busca matar o Prefeito Norman Osborn e causar o caos em Nova York. Ao mesmo tempo, o herói precisará lidar com questões pessoais, como o trabalho na Octavius Industries, a ação voluntária na organização F.E.S.T.A e a relação com sua ex-namorada Mary Jane.
O popular cabeça de teia é um dos personagens mais adaptados para os videogames, tendo mais de 30 títulos lançados, que vão do Atari até o PlayStation 4. Porém, desde Spider-Man Shattered Dimensions, publicado em 2010, não havia um game que fosse bom e carismático o suficiente para cativar público e crítica. O anúncio feito na Electronic Entertainment Expo em 2016 prometeu uma renovação do herói na mídia, e, felizmente, isso se provou mais do que correto.
Desenvolvido pela Insomniac Games, a mesma de Ratchet & Clank e Sunset Overdrive, e com direção de Bryan Intihar, o novo jogo do escalador de paredes chegou como um estrondo no mundo dos games. O exclusivo de PlayStation 4 soube reunir as melhores mecânicas dos jogos anteriores do teioso com uma história original e intrigante, uma combinação tão bem executada que tornou Spider-Man um clássico instantâneo da oitava geração de consoles.
Os roteiristas Jon Paquette, Benjamin Arfmann, Kelsey Beachum, Christos Gage e o consultor de Dan Slott buscaram os elementos centrais de uma boa história do Homem-Aranha para compor o enredo, propondo assim uma narrativa original, mas traços de familiaridade. Dessa forma, surge um Peter mais velho e experiente, com um vasto background de atuação como herói, algo pouquíssimo explorado em outras mídias, só tendo ocorrido na trilogia do Sam Raimi nos anos 2000.
Embora a história tenha um ponto de partida simples e até mesmo clichê, são os desdobramentos dos problemas e a relação entre personagens que tornam a experiência de jogar mais refrescante e gostosa. Paquette, diretor de roteiro, fez questão de incluir os principais rostos que rondam a mitologia do herói, como Mary Jane, Tia May, J. Jonah Jameson, Dr. Octavius e Miles Morales.
Sendo divulgado com o lema “Be greater” ou “Seja o maior”, o game destaca o heroísmo de Peter. Há muitos momentos que buscam testar os limites do protagonista como herói da cidade e é comovente o quão longe Parker está disposto a ir para fazer o bem ao próximo. Essas atitudes não ficam restritas apenas ao enredo principal, mas se expandem para missões secundárias em que o jogador precisa salvar cidadãos por toda a cidade.
O ápice do altruísmo está na cena final, em que ele precisa tomar uma decisão difícil para salvar a cidade inteira, criando o momento mais emocionante do jogo e um dos pontos mais altos das adaptações do herói. Outro aspecto muito interessante da narrativa é a lição de confiar em outras pessoas que o protagonista passa: ao longo da história, é necessário estabelecer uma relação de confiança com MJ e Miles, pois só dessa forma é possível derrotar os vilões.
A Insomniac apresentou a melhor versão de Peter Parker já adaptada para os videogames. Isso porque os desenvolvedores souberam desenvolver com maestria cada aspecto da personalidade do protagonista: ele é gentil, amoroso, inseguro, ingênuo, justo e acima de tudo bondoso. Essa complexidade de emoções só é possível porque acompanhamos tanto a vida pessoal quanto a rotina de herói do personagem, e a junção de ambas é essencial para a compreensão total da história e para a construção da persona do Homem-Aranha.
Já Mary Jane não é só perfeitamente adaptada, quanto essa é a melhor versão já feita dela. Isso se deve a sua profissão como jornalista, na qual ela deixa claro que não precisa da proteção do teioso para enfrentar vilões, descobrir conspirações, se infiltrar em gangues ou ajudar a salvar reféns. MJ é independente, astuta, inteligente e corajosa, ou seja, ela é muito complexa, transcendendo o simples papel de namorada do protagonista.
A direção de Intihar brinca com nossas expectativas ao jogar Homem-Aranha, principalmente no caso do personagem do Doutor Octavius, que começa como um mentor e amigo de Peter e aos poucos a sua ambição e o sentimento de vingança com Norman Osborn faz com que enlouqueça e se torne um vilão, uma trama bastante parecida com Homem-Aranha 2 (2004). A narrativa transforma a história de Otto em uma tragédia, pois não importa o que Parker faça, nada irá alterar o destino dele, e isso mexe muito com as emoções dos jogadores.
Enquanto isso, Senhor Negativo, vilão principal durante parte da narrativa, é o protagonista em sua própria história pela maneira como tem sua origem contada, tornando-o um anti herói em busca de vingança. O mistério ronda a sua persona e descobrir suas motivações e identidade é uma investigação cativante. Além disso, a ameaça que ele representa ao Homem-Aranha é gigantesca, tanto que os embates entre eles estão entre os trechos mais memoráveis do jogo.
Outros coadjuvantes ajudam a tornar o entorno do protagonista mais vivo. Tia May, por exemplo, atua como voluntária na organização F.E.S.T.A, que presta auxílio a moradores de rua, e serve como uma mentora para os momentos de maior tristeza de Peter. Por outro lado, J. J. Jameson possui um podcast chamado Aos Fatos, no qual espalha desinformação sobre as ações do Spider-Man. O mais divertido disso é ouvir os relatos dele após realizar as missões da campanha.
Também nos deparamos com Miles, um adolescente e fã do Homem-Aranha, que acaba se envolvendo com Peter e MJ após um atentado que ocorre com o seu pai. Apesar da tragédia que ronda o personagem, ele traz uma leveza à trama e causa entusiasmo para curioso sobre o seu futuro. Atualmente, no universo do jogo, Morales se tornou um Spider-Man e tem uma DLC solo lançada em 2020.
Todas essas figuras estão acompanhadas de uma dublagem caprichada, tanto na língua original quanto na versão brasileira. Yuri Lowenthal e Diego Marques como Peter Parker conseguem equilibrar a gentileza com a coragem, formulando um herói único e que se destaca dentre as várias adaptações. Laura Bailey e Rebeca Zadra dão vida a MJ mais desenvolvida até então, e suas atuações auxiliam a impor sua personalidade. Nadji Jeter e Ítalo Luiz fazem um jovem Miles que realmente se parece com um adolescente, e a esperança e carisma são palpáveis. Já William Salyers e Silvio Toledo transmitem com perfeição a dor de Otto durante toda a sua jornada.
A decisão de manter os nomes originais na dublagem brasileira foi um dos aspectos mais questionados pelo público, pois todos os consumidores já estão acostumados com as traduções, como Homem-Aranha, Abutre, Escorpião e, Homem-Areia. Porém, por motivos de padronização da marca, a Sony decidiu manter as pronúncias em inglês, o que não soa natural aos ouvidos dos gamers do Brasil.
Apesar das viradas dramáticas e muito emotivas, a palavra que melhor define a experiência de Spider-Man é diversão – e tudo isso se deve ao gameplay. Trazendo inspirações da série Batman Arkham, como a roda de equipamentos e o sistema de esquiva, além de resgatar mecânicas já utilizadas em jogos anteriores do cabeça de teia, a equipe de programação, liderada por Joseph Valenzuela, atinge o auge da movimentação fluida, dinâmica e ágil. A união disso com uma resposta rápida dos controles faz com que o jogador se sinta na pele do Homem-Aranha.
A variabilidade de equipamentos, habilidades, poderes e missões fazem com que jogo não se torne enjoativo. Cada atividade se torna diferente da anterior, principalmente porque em algumas delas o game deixa a cargo do jogador a melhor maneira de se resolver aquela situação. Essas pequenas alterações aumentam os fatores de diversão e replay de uma nova jogatina.
Os trechos de gameplay mais criticados por jogadores e jornalistas são as missões stealth, principalmente as que são necessárias jogar com MJ e Miles. Tais momentos quebram o ritmo do jogo e podem ser chatos, porém ainda são partes essenciais para criar uma variabilidade nas missões e aprofundar esses coadjuvantes através de suas atitudes. Além disso, esses trechos são tão poucos e curtos que não pesam tanto quando se observa toda a obra.
A recriação e ambientação de Nova York também é incrível, principalmente os pontos turísticos que são bastante fiéis à realidade. Intihar busca inserir lugares fictícios, que auxiliam na construção de um universo muito maior do que aquele visto durante o jogo. Alguns exemplos são a embaixada de Wakanda, Torre dos Vingadores, Sancto Sanctorum, Agência de Advogados Nelson e Murdock, entre outros easter eggs divertidos.
Já a trilha sonora composta por John Paesano é espetacular, se encaixando perfeitamente na temática heróica. Mesmo quando o player está apenas passeando pela cidade, uma música ambiente transmite a sensação de estar em um filme. As composições de Spider-Man foram indicadas em quatro premiações diferentes, sendo elas International Film Music Critics Award, Etna Comics International Film Festival, Hollywood Music in Media Awards e The Game Awards, mas infelizmente não ganhou nenhuma delas. Foi somente a DLC isolada de Miles Morales que conquistou o prêmio de Melhor Música no BAFTA Games Awards.
Homem-Aranha teve uma recepção calorosa, com notas positivas da crítica especializada e sendo considerado um dos melhores jogos de super-heróis já feitos, superando até mesmo os recentes games do Batman. Felizmente, esse universo foi expandido no conjunto de DLCs chamado A Cidade Nunca Dorme, que além de aprofundar as questões do relacionamento de Peter e MJ, também expandiu Nova York, apresentando o submundo da máfia. Até mesmo Miles teve sua expansão solo, Spider-Man Miles Morales, que ajudou a trabalhar com mais calma esse personagem que será muito importante no futuro da franquia.
Spider-Man é o jogo definitivo do cabeça de teia, trazendo uma história cativante, emocionante e muito bem contada, junto de personagens complexos e apaixonantes. Tudo isso é inserido em mecânicas formidáveis e divertidas e fazem com que a obra se torne o melhor jogo de super-herói já feito. Além disso, o game tem elementos bons o suficiente para afirmar que também é uma das histórias mais incríveis e emotivas já contadas dentro de um universo de heróis.