Gabriela Reimberg
Desde 2015, a cartilha do R&B contemporâneo trazida com The Weeknd em Beauty Behind the Madness vinha sendo seguida à risca por artistas como Drake, Ella Mai e H.E.R. — e funcionava bem, dada a imensa popularidade do gênero nos Estados Unidos. Mas faltava algo novo, inovador, que fosse além das batidas suavizadas do hip hop que todo mundo já conhecia, sabe?
Foi essa onda de renovação que Kali Uchis trouxe quando lançou seu álbum de estreia, Isolation, uma obra com altas doses de personalidade e influências que passam por rock psicodélico, bossa nova, jazz, dream pop e reggaeton. Essa versatilidade de ritmos, agora marca registrada da cantora colombiana, foi levada adiante em Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios) ∞, que, apesar de ser cantado inteiramente em espanhol, ganhou de primeira o coração dos estadunidenses ao dominar os charts do país — e do mundo — com o hit telepatía.
Falando em telepatía, a cantora deve todo o sucesso do álbum à faixa, que se tornou viral no TikTok e explodiu na internet quase que de um dia para a noite, derrubando barreiras linguísticas e tornando seu nome conhecido mundialmente — afinal, desde Despacito a gente não via tantos gringos obcecados por uma música cantada em espanhol!
A questão é que a estética latina agora é pop. Kali desencadeou uma subcultura musical que só vai crescer daqui para frente (spanglish é o futuro!). Isso fica claro não só na indústria da Música, com o Sin Miedo e a crescente de artistas como ROSALÍA e Nathy Peluso conquistando espaço global, mas também na TV e nas redes sociais.
Se você não dormiu debaixo de uma pedra nos últimos meses, deve ter acompanhado o fenômeno Maddy Perez (Alexa Demie), na série de televisão Euphoria: todo mundo ama a Maddy; todo mundo quer ser como a Maddy. Das roupas curtas e extravagantes à maquiagem carregada, Maddy é a figura latina perfeita, assim como Kali.
Sin Miedo é o retrato fiel dessa estética que Uchis vem sustentando desde o início da carreira, apesar de negar: “Eu não tenho estética”, disse a cantora em uma entrevista para a Misguided, “crio a estética para os meus projetos. O último envolveu nuvens, anjos e céu. Cheirava a algodão doce, era rosa e azul bebê e usava cílios inferiores” — e ironicamente, lendo hoje, não dá para saber se ela falava sobre o Por Vida, To Feel Alive ou Sin Miedo.
Para além dos visuais, a personalidade de mulher durona e independente “à la Maddy Perez” fica evidente em ¡aquí yo mando!, primeiro single do álbum, que contou com a participação da rapper Rico Nasty para divulgar o lançamento. “É, eu sou sua mamacita/Você faz tudo o que eu digo/Isso aí, se ficar comigo, saiba que só eu mando/Isso aí, aqui não funciona como e quando você quer.” — Seria essa a trilha sonora do relacionamento de Maddy e Nate?
As 13 músicas que compõem o álbum são bastante diferentes umas das outras, mas conseguem, ao mesmo tempo, se conectar por meio de suas líricas que tratam sempre sobre os sentimentos pessoais de Uchis acerca de temas fundamentais como amor, desejo e autoestima. A genialidade da cantora está na capacidade de combinar ritmos inovadores e fora da caixinha com letras chiclete que dão a roupagem comercial que suas músicas precisam, mas sem perder qualidade.
Primeiro, somos introduzidos com o que poderia facilmente ser a trilha sonora de uma novela mexicana cheia de traições e reviravoltas. la luna enamorada, primeira faixa do disco, é versão cover de um clássico da Música cubana interpretado originalmente pelo grupo Los Zafiros, assim como que te pedí//, da icônica cantora La Lupe. Nas duas faixas, a combinação do bolero e da guaracha com os vocais graves e arrastados nunca vistos antes na discografia Kali foi uma surpresa deleitosa.
Se em Isolation tínhamos a impressão de estar sempre nadando em um mar de rosas com os calmos e sonolentos vocais de Uchis, desta vez, a cantora colombiana mostrou que veio para quebrar tudo. O reggaeton, que entrou em seu repertório timidamente em Nuestro Planeta, agora ganha mixagens mais agressivas e dançantes com te pongo mal(prendelo) e la luz(Fín). As faixas podem ser classificadas como neoperreo — o subgênero do reggaeton que subverte papéis de gênero e dá voz para que as mulheres também falem sobre seus desejos e fantasias sexuais.
Mas, em meio a todos esses ritmos latinos, é claro que Kali também achou espaço para agradar seus fãs norte-americanos. A faixa fue mejor é um R&B comercial que contou com a colaboração do queridinho PARTYNEXTDOOR e, posteriormente, ganhou uma versão com a rainha do gênero, a cantora SZA.
Enfim! Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios) ∞ é, definitivamente, um álbum bem menos complexo que Isolation, mas que ganha por suas combinações inusitadas — ora de ritmos, ora de idiomas. Dá para dizer que são artistas como Uchis que estão subvertendo padrões estéticos e levando novos ares à indústria da música que conhecemos tradicionalmente, como indica a sua nomeação ao Grammy 2022, na categoria de Melhor Álbum de Música Urbana. Pelo menos isso a gente pode agradecer ao TikTok!