Vitor Tenca
A crença de que a Terra era quadrada caminhava lado a lado com a ciência em épocas passadas e, junto consigo, diversas teorias do que existia do outro lado eclodiram. Quem criou uma passagem um tanto quanto maluca foi Dante Alighieri em seu livro A Divina Comédia, que se baseava na ideia de que o inferno possuía níveis para cada pecado capital. Mas não é apenas nesse período que sua obra é utilizada como fonte de inspiração. Em Se7en – Os Sete Crimes Capitais, David Fincher esculpe seu antagonista mais diabólico para contrastar com seu caráter messiânico, quase saído do Purgatório.
O diretor, que vinha de climas “áridos” após a produção de Alien 3, pretendia se consolidar no mundo do cinema e, merecidamente, conseguiu. Seven é até os dias de hoje um dos filmes mais lembrados da respeitada carreira de Fincher. No longa, acompanhamos a dupla de detetives composta pelo experiente William Somerset (Morgan Freeman) e o afamado David Mills (Brad Pitt), investigando um assassino em série que escolhe suas vítimas de acordo com os sete pecados capitais. Com isso, experienciamos uma mistura entre religião e psicopatia.
Somerset inicia o filme pelo final de sua carreira, deixando bem claro o desejo de se aposentar. O investigador demonstra constantemente o amargor pela onda de violência que toma a cidade, além de não se conformar com a apatia que passa a ser vista como modelo de exemplo para o cidadão comum. Mas o que passa despercebido por muitos é justamente esse conceito de consonância, já que vemos um detetive em constante transformação, contando com a genialidade da atuação de Morgan Freeman. “O mundo é um bom lugar, pelo qual vale a pena lutar. Estou de acordo com a segunda parte”.
David Mills, interpretado de forma enérgica pelo galã Brad Pitt, nos deixa com uma dúvida logo de início: porque ele se transferiu para um local tão desinteressante? Colocando na balança, o trajeto pelo qual chega a seu destino já não vale mais a pena, seja devido ao apartamento “vibrante” do casal – uma cena que serve como pausa para o espectador respirar – ou pela dedicação do agente na trama do assassino. Esse esforço rende uma relação quase que afetiva entre Mills e o responsável pelos crimes, seja por meio da inveja ou da ira.
A dupla cria um grande entrosamento com o passar dos minutos. A relação, que antes era insuportável, se torna complementar. Enquanto David chuta portas e quebra as leis, Somerset opta por uma abordagem mais metódica e virtuosa, funcionando de forma semelhante a um ying yang, tanto dentro quanto fora das cenas dos crimes. Mas, o que nem mesmo a química entre os dois consegue juntar, é a conclusão sobre o funcionamento da mente de um assassino em série como esse: afinal, seria o vilão um doente mental ou um profissional de sua área?
A abertura mostra a sutileza que David Fincher possui para trabalhar com seus filmes. Utilizando uma série de spoilers e easter eggs, diversos escritos assustadores, páginas esquisitas, imagens aterrorizantes e menções religiosas aparecem. O espectador que vê aquela cena sente do desconforto à curiosidade, porém, fica sem saber que aquilo é uma menção clara a residência de John Doe – o psicopata que acha que é algum tipo de enviado divino, o que combina com alguém da estirpe de Kevin Spacey. A fusão dessas duas qualidades cria o vilão perfeito para o mundo dos pecados capitais.
O ambiente que Doe habita não é nada menos que mórbido. Marcado por uma grande cruz em neon vermelho, encontramos todos aqueles spoilers e até algo a mais, como a foto da dupla de detetives, retomando o momento que encontram um fotógrafo suspeito em cenas anteriores (o que mostra a vantagem que John possui sobre o par). No entanto, não apenas essa cena é tomada por um tom mais sombrio. Em todos os crimes cometidos somos impregnados por um clima fúnebre e mórbido, seja pela ambientação obscura ou pela forma bizarra como o homicídio aconteceu.
E, de forma geral, nos deparamos com uma atmosfera digna para o longa. É notável o aspecto grotesco, carregado e, até certo ponto, depressivo da cidade não identificada do universo dos crimes. Chega a ser criado no imaginário do espectador uma espécie de Gotham City, sem seu vigilante mascarado. Mas não somente o tempo chuvoso e clima nublado caracterizam as ruas desse local recôndito, como também as constantes sirenes, sejam de ambulâncias ou de viaturas – ou mesmo de ambas – que marcam esse ambiente denso que Fincher traduz com perfeição.
Um personagem que não ganha o destaque merecido pela atuação é Gwyneth Paltrow, que personifica Tracy Mills, a esposa de David no universo de Seven. Suas cenas, muitas vezes, servem como um desviar de olhares para toda a matança do filme, além de fornecer a esperança para um mundo melhor. Seu caráter alegre e positivo acaba influenciando até um desanimado Somerset para acreditar num futuro próspero. Contudo, isso contrasta com uma esposa que não quer ser um fardo para o marido, encabeçando, em partes, o final do longa.
Um dos fatores mais intrigantes da forma como a história se desenrola é que o espectador assiste o espetáculo com os mesmos olhos dos detetives. O filme faz questão de nos fornecer apenas as informações necessárias para sabermos justamente o que os agentes sabem e, dessa forma, juntamos as peças dos crimes ao lado dos personagens. Um grande exemplo disso vem direto do pôster de divulgação, que é estampado com os rostos dos atores, mas não há créditos para Kevin Spacey, dessa forma não podemos pré-associar a imagem do assassino com ninguém.
Sem dúvida alguma, Seven nos deixa com uma das cenas mais memoráveis da história do cinema até hoje. O “what’s in the boooox?”, pronunciado por Brad Pitt, ficou no imaginário popular repleto de reproduções na cultura pop. Mas, não é apenas o fervor com que Mills se torna a ira que deixa essa passagem sensacional. Desde o plano de John Doe que o sagra vencedor – e cria o plot twist perfeito no mundo cinematográfico – até a explicação de Somerset que o assassino tinha tudo isso planejado, a cena fica marcada em todos que assistiram.
Mesmo após 25 anos, Seven ainda incomoda o espectador com sua religiosidade perturbada. O conceito que uma vez já incomodou a crítica como “mais um filme sangrento e sem fundamento”, agora mostra a sutileza de como fanatismo e desequilíbrio caminham lado a lado. Enquanto isso, também traz consigo a ideia de que a violência se arrasta para dentro de nosso dia a dia, mas igual Somerset diz: deveríamos tratá-la sem apatia. Com isso, o filme termina como começa: “senhoras e senhores, temos um homicídio”.
Ótimo texto/resenha. Obrigado Vitor Tenca