“Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída. Os fãs, esses sinceros, empunharão capas dos meus discos e entoarão “Ovelha Negra”
Ana Júlia Trevisan
A história da música brasileira é marcada por ícones inigualáveis que, ora choravam todas as suas dores de corno em versos expositivos, ora eram exilados do país, pedindo em súplica que a censura fosse afastada. Entre os titãs, está a Ovelha Negra, Rita Lee. Pioneira do rock brasileiro, compositora sincera e inconfundível, Rita era uma personalidade muito além do que a mídia massiva queria construir como a figura brasileira de mulher do lar. Adjetivos nunca serão suficientes para descrever essa mulher que colocou, sem dó, o dedo na ferida. No entanto, sua autobiografia deixa claro qual a melhor palavra para defini-la: humana.
Rita Lee: uma autobiografia passeia por momentos que traçaram a rota da música brasileira. Ativa nos palcos desde a década de 1960 até 2012, Rita não apenas participou da imensa maioria dos períodos artísticos brasileiros, como fez história. Sua importância para a cultura permitiria tomar uma distância intelectual dos meros mortais que consomem seu livro, mas a leitura leve, divertida e, por vezes, irônica, faz com que o ato pareça um café da tarde ouvindo as histórias de vó Rita. A vida tão perfeitamente humana dessa mulher é contada com simplicidade e um tom muito único de se expressar.
O livro foi lançado em 2016 pela Globo Livros. A edição vem da mão de seu maior fã, Guilherme Samora, que também cumpre o papel de filho do coração, afilhado, amigo e especialista da carreira de Lee. Esse trabalho feito com muito carinho reforça a naturalidade da escrita. As histórias contadas com certa liberdade artística, já que nem mesmo ela se lembra de tudo que viveu, ganham um tom de deboche ao inserir entre as páginas um fantasminha que, vez ou outra, aparece para corrigir um fato ou um feito que Rita tenha esquecido de mencionar.
A experiência de quase ouvir a voz da autora lendo os trechos da autobiografia se torna ainda mais plausível quando lembramos de sua própria discografia. Apenas la mais caliente de las mujeres, a compositora de “me deixa de quatro no ato” poderia ser tão sincera em suas palavras. Não há burocracias, falso moralismo ou qualquer lenga-lenga. É a história nua e crua narrada por quem a vivenciou. Além disso, a cantora faz narra sua vida de forma cronológica, desmontando uma hierarquia de acontecimentos e colocando os fatos no mesmo patamar.
Rita Lee é filha de um americano e uma italiana, a mais nova das irmãs, e vivia com a família num casarão dos anos 1920, na rua Joaquim Távora, 670, na Vila Mariana. A própria artista nomeia o grupo de harém, afinal, um único homem rodeado de mulheres. Os relatos sobre sua infância são escritos como se tivessem sido vivenciados ontem mesmo. Dividido em capítulos curtos, Rita Lee: uma autobiografia ganha caráter de conto, viajando por mais de 10 bandas que formou, participando como cantora, artista e compositora.
Em paralelo, ela vivenciou os mais variados momentos sociopolíticos no país, usando a arte para causar estranheza e indagações. Em suas 296 páginas, vida e arte caminham lado a lado para formar o legado e a força de uma mulher autêntica. Uma história de vida contada com erros, acertos, altos e baixos. Para quem já conhece a padroeira da liberdade, uma autobiografia revela também a mulher, o grande amor da vida de Roberto de Carvalho, mãe de Roberto Lee (ariano), João Lee (canceriano) e Antonio Lee (leonino).
O absoluto deleite da obra fica nos bastidores. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina, Hebe Camargo e outros personagens marcantes da Música brasileira são citados de maneira real, sem o glamour conquistado pela carreira vitoriosa. Com Hebe, Rita relembra com muito humor e paixão a diferença entre o estilo de vida das duas. O posto de diva ocupado pela apresentadora vem da ajuda que ela deu em tirar Rita Lee das drogas e abrigá-la em sua casa. Os selinhos de Hebe? Começaram com Rita, que dizia ir ao programa apenas para sentar ao seu lado e acompanhá-la.
A maior expectativa que pairava em Rita Lee: uma autobiografia ficou a cargo da trajetória da cantora em Os Mutantes. Expulsa da banda pelos irmãos Sérgio e Arnaldo Baptista, esse sempre foi o ponto da história digno de uma enxurrada de fofocas. O fato é que as viúvas da banda nunca aceitaram que Rita foi coroada a rainha do rock, tornando-se a mulher que mais vendeu discos na história do Brasil. Sem méritos ou deméritos, Rita olha com muita sobriedade para o passado, encarando o patriarcado que criou uma barreira em sua carreira musical, contudo, a autora equilibra seus relatos mostrando admiração por Arnaldo, ainda completando que a relação da banda tinha mais a ver com a facilidade de se viver aventuras na casa dos meninos do que com uma identificação pessoal.
Rita era a contraventora da moral e dos bons costumes, incitava a crítica, foi censurada e presa por isso. Ela exaltava a sexualidade da mulher em um momento em que isso era inaceitável. Em cima dos palcos, ela evidenciava a hipocrisia do país, desfilando uma Miss Brasil 2000 nos anos 1970. De Santa Rita de Cássia a São Francisco, ela esteve à frente de sua época e defendeu os animais com unhas e dentes. Uma autobiografia com arte, talento, feminino, mãe e avó. Suas páginas ainda são preenchidas com fotografias de seu acervo pessoal e lista todos os álbuns lançados e as músicas de cada um.
Por fim, Rita se mostra uma mulher madura, consciente e orgulhosa de toda a intensidade que viveu. A sinceridade da cantora não abre brechas para um discurso de Maria Madalena arrependida das drogas, não há vergonha por ter experimentado todas, apenas orgulho por ter saído de cada uma delas. “A sorte de ser sido eu, de ter sido quem sou, de estar onde estou, não é nada comparada ao meu maior gol. Sim, acho que fiz um monte de gente feliz”