Guilherme Dias Siqueira
Alguns tipos de pessoas nos chocam pela insensibilidade, por não apresentarem remorso e por causarem mal a qualquer um que não lhes sirva um propósito. Em Ripley, série de suspense neo-noir da Netflix, acabamos hipnotizados por um estranho sujeito que se encaixa nessas categorias. Porém, isso não significa que Thomas Ripley, um contador “difícil de se achar”, que se esgueira pelas ruas sujas de uma Nova York da década de 1960, seja um vilão carismático – para falar a verdade, ele é antipático e amargo de uma forma irremediável.
O que nos captura em Ripley são as situações que se enrolam nas pernas do protagonista, interpretado por Andrew Scott, como teias de aranha. Ele tem que dominar a situação e o faz com absoluta maestria. Desde quando é abordado por um detetive particular em um bar, Tom consegue dar todas as respostas certas. O problema é que pessoas comuns não dão apenas respostas certas. A falsidade das poucas emoções que o norte-americano consegue simular não convence a todos.
O primeiro a desconfiar do fingimento é o Sr. Hebert Greenleaf (Kenneth Lonergan), um industrial riquíssimo, porém, desesperado para reencontrar o próprio filho, Richard, o Dickie, que vive como um artista amador na Europa. O empresário não pensa duas vezes em enviar Tom para Atrani, um vilarejo no sul da Itália. Embora ele saiba que não é prudente confiar em uma pessoa com esse tipo de índole, ele espera que a lábia do vigarista convença Dickie a voltar para casa.
Dickie (Johnny Flynn) é um playboy completamente ludibriado com a vida fácil que leva, transitando entre tardes tomando sol na praia e viagens para esquiar com os amigos. O que um sociopata como Tom enxerga é uma presa fácil, uma oportunidade de lucro que, para ele, desperdiçar seria uma falta de inteligência severa. A partir do primeiro encontro, o golpista elabora um plano básico. Ele não tem todos os detalhes em mente e, talvez, seja isso que deixe essa empreitada realizável, mas o amigo de Dickie, Freddie Miles (Eliot Sumner), e a namorada Marge (Dakota Fanning), são duas pedras firmes e intransigentes no caminho de Tom. Eles ditam cada passo que o estelionatário deve tomar caso deseje escapar ileso e muito rico.
A série é guiada, em boa parte, pela toada das desconfianças não declaradas. É como se Tom e os outros personagens, especialmente o inspetor de polícia de Roma, interpretado por Maurizio Lombardi, dançassem alguma espécie de tango: um dá um passo à frente e o outro recua, sucessivamente. Essa movimentação começa a ficar cada vez mais tensa à medida em que descobrimos do que Thomas é capaz; muitas vezes, ele parece um pouco surpreso com o que fez.
Entre as atuações, destacam-se Dakota Fanning, Maurizio Lombardi e Andrew Scott. Marge, personagem de Fanning, sabe flutuar perfeitamente entre a desconfiança e um certo encantamento. Já Lombardi, mantém a postura impassível de quem sente um desprezo profundo, mas que, em momento algum, o demonstra verbalmente. Por fim, o Tom de Scott é um ápice de cinismo e de variedade, uma vez que ele simula mais de uma personalidade dentro de um único personagem, como uma atuação em dobro.
A fotografia da série é especialmente charmosa. Todos os planos nos corredores estreitos de Atrani sabem ser confusos e instigantes como um quadro de MC Escher, com escadarias que ora parecem subir, ora parecem descer. A beleza das paisagens se destaca no preto e branco que ajuda a dar profundidade no mar, nas catedrais – que são muito importantes para a trama –, e na própria noção de tempo. Robert Elswit tem uma visão genial sobre a combinação entre a arte renascentista italiana e a odisseia de Tom Ripley. Temas recorrentes como a culpa suprema do maior pecado bíblico são retratados de modo a imitar diversos quadros e esculturas.
O Talentoso Ripley, livro escrito por Patricia Highsmith na década de 1950, é um marco cultural. Suas diversas adaptações – que vão desde o filme clássico franco-italiano de 1960, O Sol Por Testemunha, dirigido por René Clément, até o longa de 1999 onde temos Matt Damon no papel de Tom –, são todas de bom gosto e cada uma interpreta o personagem a seu estilo. Por isso, a minissérie de Steven Zaillian não parece ter poupado despesas ou esforços para se destacar entre as demais obras.
Se o romance literário, por sua vez, é tão abrangente em sua influência na cultura popular, que chegou a ser uma das inspirações do filme Saltburn (2023), a série se reconhece como filha e herdeira de antepassados que flertaram entre o pop e erudito. Talvez para os que tenham assistido aos anteriores, o roteiro de Steven Zaillian não se distingue tanto; o vigor da série se dá fundamentalmente pelo seu modo de produção. Neste caso, a forma se destaca tanto quanto o conteúdo.
A obra foi pensada desde o início como uma minissérie, algo agradável para aqueles que não gostam de conteúdo diluído e preferem todo o potencial de algo concentrado como numa xícara de café expresso. Mas Ripley merece uma continuação, uma vez que não deve ser surpresa, a esta altura, de que Tom é escorregadio como sabão e consegue se livrar de alguns impasses enquanto outros parecem jurar persegui-lo pelo resto de sua existência. A única coisa que poderia superar a primeira temporada do seriado, em beleza estética e engenhosidade de roteiro, seria uma segunda temporada.