Danielle Cassita
Quando se tem o mundo todo à disposição – e, se não, é possível chegar bem perto com o uso da internet -, fica difícil imaginar como seria nascer e viver apenas em um quarto.
É essa a realidade de Jack, o protagonista do livro Quarto.
A obra de Emma Donoghue conta a história de um garoto que nasceu no cárcere em que sua mãe é mantida desde os 19 anos de idade.
Durante a primeira metade, o leitor é apresentado ao cotidiano dos dois, sempre pela narração de Jack. Eles brincam, fazem exercícios e outras atividades dentro do possível, já que a mãe do menino tem que improvisar com o que está ao alcance dos dois dentro do Quarto.
A obra possui pequenos aspectos ortográficos interessantes para ajudar a contextualizar: o garoto constantemente se refere a diversos objetos do cômodo com letra maiúscula, como se fizesse questão de mostrar a importância daquilo para ele; outro ponto que vale a pena ser comentado são pequenos erros gramaticais e de pontuação, que demonstram a alfabetização da criança:
“Eu estava meio agitado, aı́ a Mãe disse pra brincarmos de Orquestra, que é quando a gente circula batendo nas coisas pra ver que barulhos consegue arrancar. Tamborilei na Mesa e a Mãe fez toc toc nas pernas da Cama, depois puf puf nos travesseiros, e eu usei o garfo e a colher na Porta, plim plim, e os nossos dedos dos pés fizeram bum no Fogão, mas o meu favorito é pular no pedal da Lixeira, porque isso faz a tampa abrir com um pingue. Meu melhor instrumento é o Dlendlem, que é uma caixa de cereal onde eu colei todas as pernas e sapatos e casacos e cabeças diferentes e coloridas do catálogo velho, e depois estiquei três elásticos no meio. O Velho Nick não traz mais catálogos para escolhermos nossa roupa, a Mãe diz que ele está ficando mais mesquinho.”
Porém, nem mesmo a linguagem ingênua ameniza diversas violências que ocorrem com a mãe de Jack.
O menino dorme dentro de um armário, como uma forma de proteção encontrada por sua mãe. Assim, de noite, o sequestrador que eles chamam de Velho Nick entra no quarto e… Bem, Jack apenas conta cada rangido da cama antes de dormir, sem conseguir compreender o que está realmente acontecendo.
Esta é uma cena recorrente no livro, assim como outras do tipo. A autora é habilidosa ao descrever abusos verbais e sexuais sob a ótica de uma criança, que não é totalmente poupada da realidade que a cerca e, ao mesmo tempo, também não a entende.
Emma Donoghue tem seu mérito por ter criado uma narrativa extremamente ágil e envolvente, que pede a curiosidade do leitor durante a maior parte das vezes; para ilustrar, estão presentes várias referências culturais tanto da música quanto da literatura – e uma delas é a fuga de Jack, totalmente inspirada no plano empregado por Edmond Dantés, personagem principal do romance Conde de Monte Cristo.
“— Está bem, está bem. — Ela respirou alto. — Lembra do conde de Monte Cristo?
— Ele ficou trancado num calabouço numa ilha.
— É, mas você se lembra de como ele saiu? Ele fingiu que era o amigo morto, se escondeu na mortalha e os guardas o jogaram no mar, mas o conde não se afogou, livrou-se da mortalha e saiu nadando.”
A tensão e ansiedades geradas no leitor são intensas até poder, finalmente, respirar aliviado após o final da cena de fuga.
Porém, quando os dois voltam para a vida comum que deveriam ter levado, a escrita perde ritmo considerável; os capítulos que retratam o novo cotidiano de Jack e sua mãe mostram um processo de adaptação: tratamentos em hospitais, primeiras saídas a locais públicos e até mesmo comportamentos que causam estranhamento, mas que eram aceitáveis quando estavam trancafiados no Quarto.
Mesmo retratando a lenta recuperação física e, principalmente, psicológica, esta parte final do livro não desperta tanta curiosidade e interesse quanto as anteriores, seja pela ausência do clima de tensão, seja pela retomada de uma história que volta a ser rotineira.
O desfecho apresentado também não é dos mais memoráveis: Jack e sua mãe passam a morar num apartamento próprio para pessoas em reabilitação e, após certo tempo, decidem voltar para o local onde foram aprisionados para se despedirem. Apesar do claro tom de recomeço para ambos os personagens, fica a sensação de há algo errado numa narrativa que teve tanta vida e agilidade e, então, diminui o ritmo.
É possível que a autora quisesse criar um final que não fosse necessariamente feliz, mas cabível e, principalmente, que tivesse a acidez característica de uma realidade tão bruta.