n.v.z
O fato de o Oscar dar mais atenção à produções de menor sucesso comercial que seu primo musical ainda não é (nem nunca será) sinônimo de plena igualdade – ou representatividade, para usar um termo em voga. A mísera indicação na categoria de Melhor Ator Coadjuvante pela atuação de Willem Dafoe em Projeto Flórida (The Florida Project) é prova cabal.O novo filme do diretor Sean Baker, que ganhou fama por Tangerine, mostra o dia a dia da pequena Moonee (Brooklyn Prince) com sua mãe Haley (Bria Vinaite). Elas vivem aos trancos e barrancos, com pouco dinheiro e morando num hotel mediano de beira de estrada, gerenciado por Bobby (Willem Dafoe). A filha passa as férias ao lado de coleguinhas pobres da região, aprontando traquinagens e se divertindo com trivialidades; andar por quilômetros se torna uma grande aventura, e conseguir dinheiro para o sorvete é quase conquista de vida.
Assim como o grande vencedor da cerimônia passada, Moonlight, é uma obra que centra o olhar no período mais gracioso da vida, com pessoas pouco favorecidas para aproveitar a infância plenamente. A paleta de cores de Projeto Flórida também é trabalhada em tons de azul, roxo e rosa, realçando uma estética onírica. As crianças moram perto da Disney, que não poderia ser mais intangível à sua condição financeira. Como certo compositor cearense dizia, delírio com coisas reais.
A fotografia alterna entre planos abertos e closes com maestria. O espectador é colocado de forma quase invasiva em cubículos sujos, e no momento seguinte dá de cara com visões amplas de megalojas de Orlando. É o contraste mais violento da desigualdade social, retratado com sensibilidade de rara poesia. Que as construções genéricas de O Destino de uma Nação tenham sido escolhidas nesta categoria do Oscar no lugar deste filme é quase surreal. Uma tomada próxima do final, onde a câmera foca na boca de Halley, carrega sozinha maior pungência que boa parte dos indicados.
Tal sensibilidade fica mais forte no roteiro. A extrema naturalidade com que Baker conduz a linha do tempo do cotidiano só fortalece os momentos de pico: sejam alegres ou melancólicos, tais eventos se revelam como peças raras em meio ao marasmo constante. Um dia de fartura parece sinalizar tempos melhores, enquanto brigas violentas com a vizinha mostram que a ferida é mais funda. A empatia não barra o preconceito, nem a inocência infantil consegue mascarar o peso das dificuldades sofridas por uma criança com mãe solteira pobre.
Pode ser uma comparação boba, mas não é exagero afirmar que este filme é um anti-A Vida é Bela; a mãe não distorce a realidade para apaziguar a situação para a filha, e sim a ensina a conviver com ela e se entreter com o possível. “Esse perfume vai te ajudar a atrair mulheres!”, diz a pequena, enquanto ajuda Haley em um de seus muitos bicos para se sustentar.
A química entre Moonee e Haley é algo a se destacar. Além das atuações intensas, a direção se mostra fundamental para que a filha seja reflexo preciso da personalidade da mãe: seu tato para guiar crianças é latente, e elas realmente parecem se divertir no set. Essa liberdade criativa se aplica à Bria Vinaite, encontrada por Baker via Instagram e convidada para o papel sem experiência prévia nas telonas. Em uma experiência próxima à do neorrealismo italiano, parece interpretar uma versão ainda mais despojada de si mesma. Na antemão, o veterano Willem Dafoe constrói nuances sutis para seu Bobby – um gerente linha-dura, de coração mole.
Quiçá a condecoração do Oscar não seja mesmo necessária para Projeto Flórida, e este se transforme em peça cult como foi seu antecessor. De todo modo, já é inegável que o filme perpetua uma bela safra do cinema realista da década, marcada especialmente por títulos coming of age como Boyhood, Moonlight e Lady Bird. Com orçamento abaixo destes, não há como não reconhecer que Sean Baker, mesmo que timidamente, triunfou perante a seletividade canibal do capitalismo – assim como o desfecho esplêndido, lo-fi deste filme, penetrou no cerne do sonho infantil americano e o marcou com seus traços.