Guilherme Veiga
Lançar uma moda não é das tarefas mais fáceis e premeditadas. Ela simplesmente acontece, como uma aurora boreal ou a formação de um tornado. Repetir esse sucesso e criar uma tendência, então? É extremamente mais difícil e inúmeros são os fatores, como originalidade, proposta, apelo e mercado já estabelecido. Na música, podemos colocar os festivais nesse balaio. Encabeçados pelo pai dos megaeventos musicais, Woodstock, passando pelo rural e flamulado Glastonbury, o apocalíptico Burning Man, o descolado Coachella, o psicodélico Tomorrowland e o desastroso Fyre Festival; os festivais hoje são uma realidade na indústria do entretenimento.
Em terras brasileiras, que tinham uma experiência próxima com o Festival de Música da Record – de festival não tinha nada, pois era um concurso -, foi o apoteótico Rock in Rio de 85 que iniciou os trabalhos. Isso, além de dar margem para outras vertentes nacionais surgirem nos anos seguintes, colocou o Brasil no mapa dos eventos. Foi somente em 2013 que o reinado do festival carioca foi ameaçado com a chegada do já estabelecido Lollapalooza, criado em 92. Com um cenário extremamente polarizado, parecia difícil adentrar esse público – o próprio Tomorrowland arriscou algumas edições, sem sucesso. Porém, em novembro de 2022, uma brisa de primavera trouxe novos ares para esse cenário, com a primeira edição do Primavera Sound.
Sendo um dos mais novos desse grupo, o evento foi concebido em 2001, em Barcelona, na Espanha, e logo se tornou referência na Europa quando o assunto é música alternativa. Rapidamente virou queridinho do público e dos artistas, principalmente por sua miscelânea cultural e diversidade, que atraiu nomes como Caetano Veloso, por exemplo. Logo, o festival também cruzou a fronteira portuguesa com a edição na cidade do Porto, dominando de vez o Mediterrâneo.
Somente 21 anos depois de sua fundação que ele resolveu cruzar o Atlântico para quatro edições no continente americano: Los Angeles, Santiago, Buenos Aires e São Paulo. Ao mesmo tempo em que a decisão soa conservadora devido à demora, uma vez que alguns de seus irmãos concorrentes já tinham feito o caminho inverso, ela se mostrava arriscada. Barcelona já estava fincada na rota dos eventos, funcionando quase como uma Meca dos indies, e esse talvez era um passo megalomaníaco demais para quem tem em seu DNA um toque de minimalismo.
Mas como entrar no homogêneo território dos diferentões aqui do Brasil? Na busca pelo seu diferencial, o festival notou que sua maior novidade era algo batido, que, em algum momento, se perdeu pelo caminho: a própria Música. Longe das megaestruturas extremamente decoradas, das rodas gigantes instagramáveis, dos fogos de artifício ao final ou as tirolesas cortando os palcos, a primeira edição do Primavera Sound em terras brasileiras entendeu que o verdadeiro showman são as pessoas que o compõem, estejam elas em cima ou em frente àquela estrutura metálica, mostrando um enorme respeito tanto com o público quanto com os artistas.
Assim como qualquer novidade que se comprometa a quebrar certos padrões, a ideia dividiu opiniões e torceu o nariz de alguns em seus primeiros passos. A escolha do Distrito do Anhembi foi o ponto de partida, devido a consolidação do Autódromo de Interlagos para esse tipo de evento. Logo depois, seu maior tesouro foi talvez o mais contestado: o line-up. Aqui, ele mostrou que não está disposto a arrastar multidões baseado em charts do Twitter, mas sim usar a Música como principal fio condutor de experiências únicas, sem precisar apelar para seu nome ou para nomes gigantes do mainstream.
Claro que não podemos subestimar os gradeiros que foram para o Anhembi com um único objetivo, afinal, todos têm aquele artista por quem seu coração bate mais rápido e o nervosismo toma conta minutos antes de vê-lo no palco. No entanto, nesse caso – e isso é grande mérito da curadoria dos nomes – prezou-se pelo conjunto da obra e pelo mix de sensações que somente um festival em sua forma mais genuína pode proporcionar. Pensar que o típico fã de Travis Scott coexistiu com o fã de Caroline Polachek, no mesmo lugar em que Hermeto Pascoal se apresentou, coloca o line-up do Primavera Sound como um dos melhores – se não, o melhor – do ano.
Esse acerto se deu por dois aspectos. O primeiro: caras novas. Enquanto outros festivais repetem à exaustão Jota Quest e Capital Inicial ou trazem The Strokes e Cage The Elephant ano sim, ano não, o Primavera apostou em nomes que sequer tinham conhecido o afeto do público mais caloroso do mundo. Isso, além de um ótimo atrativo, fez com que os artistas estivessem sedentos por entregar uma ótima primeira impressão, convergindo com uma plateia extremamente engajada que surpreendeu a maioria dos performers ao mostrar que sua música chegava tão longe. Tal cenário resultou em performances apoteóticas, como o estrondoso coro de gritos no final de I Know The End, coroando o desempenho de Phoebe Bridgers, ou a capela de Washing Machine Heart do público que rendeu um “good job” de Mitski.
O outro aspecto? Elas. Na primeira edição do Lollapalooza, em 2013, um nome feminino só aparecia a partir da sexta linha do line-up e somente três anos depois teríamos uma headliner, com Florence + The Machine. No Rock in Rio, quase sempre o principal nome é masculino e, em uma tentativa de reparação, a edição de 2022 reservou um dia para as artistas no Palco Mundo. Dos 63 nomes do Primavera, 24 eram mulheres, aproximadamente 40% de suas atrações originais. Isso sem contar nomes como Lorde, Björk, Phoebe Bridgers, Mitski e Charli XCX ocupando altas posições da lista, e não podendo esquecer de Gal Costa, que infelizmente teve que cancelar sua nova versão de Fa-tal, naquela que provavelmente seria sua última apresentação em vida.
Claro que Arctic Monkeys e Travis Scott foram os maiores chamarizes. Contudo, o que se viu foi um festival tomado por elas, notável no discurso de Lorde, exaltando os nomes femininos do dia. E era impossível não notar o quão gratas elas estavam por viver aquele momento juntas, seja pisando pela primeira vez no Brasil, seja voltando depois de anos. Vale lembrar também que o evento abriu seu fim de semana com Tasha & Tracie e fechou com Mc Dricka, evidenciando uma de suas principais características: além de não se prender a um estilo de música e apresentar novos gêneros e artistas, o festival tem como missão fortalecer a cena local. Através das duas expoentes femininas, é uma tremenda esperança para o espaço que todas elas, nos mais diferentes momentos de suas carreiras, ainda podem ocupar.
Raveena, por exemplo, se espantou com a recepção do público. Mitski fez um verdadeiro show de arena. Björk e toda sua excentricidade lembrou que tal experiência é gigantesca demais para caber em uma tela de celular. Chai e Japanese Breakfast trouxeram a vertente asiática para o Palco Becks e suas árvores, enquanto Phoebe Bridgers e Lorde floresceram na dobradinha do Palco Primavera. Jessie Ware entregou a performance de sua carreira. Arca e Caroline Polachek botaram o Palco Elo abaixo. E a agora paulistana Charli XCX não pode reclamar, pois finalmente encontrou o caos e a energia do público que tanto procurava.
Extremamente bem organizado e diverso, em todos os sentidos positivos, o festival, que chegou a ser cotado como flop do ano, estreou botando muita inveja em seus concorrentes. Entre as fantasias de esqueleto, as graphic tees, as maquiagens azuis e amarelas em referência a Solar Power e as balinhas icebreakers, o Primavera Sound São Paulo entregou um debut histórico. Ainda não confirmado para 2023, o evento pode morrer em sua primeira edição ou, quem sabe, durar tanto que eu possa não estar em vida em sua última apresentação. Mas se tem uma coisa que a brisa fresca do próximo ano promete trazer e nos faz lembrar é que não importa o que aconteça, não se pode deter a chegada da primavera.