Raquel Dutra
A primeira vez que Elza Soares cantou em público foi em 1953. Na época, com apenas 23 anos, a artista já enfrentava a dureza da vida e viúva de um casamento que aconteceu quando ela tinha apenas 11 anos, lutava pela sua sobrevivência e a de seus filhos. Movida pelo desespero de ver um deles doente e sem dinheiro para o tratamento, ela decidiu participar de um programa de calouros da Rádio Tupi, apresentado por Ary Barroso. Naquele dia, com suas vestimentas humildes, Elza encarou os risos da plateia quando foi se apresentar e foi questionada em tom de chacota pelo apresentador: “De que planeta você vem, minha filha?”. O público gargalhou e logo foi cortado e constrangido pela resposta de direta de Elza, que mesmo ainda revestida de humildade, não deixou-se intimidar e disparou: “Do mesmo planeta que você, seu Ary. Do planeta fome”.
O silêncio constrangedor imperou e Elza foi autorizada para soltar a sua voz, surpreendendo a todos mais uma vez. A letra forte de Lama combinada à interpretação rouca e vivaz da jovem criou uma atmosfera no estúdio do programa e Ary Barroso a interrompeu afirmando que, naquele momento, “nascia uma estrela”. Foi ali que parte do Brasil conheceu a força da mulher que viria a ser uma das artistas mais relevantes e de maior impacto cultural do país.
E no ano passado, chegando aos 90 anos de idade e 60 de carreira, Elza relembrou esse dia emblemático para sua história e para a história da música e da cultura brasileira num álbum que carrega os elementos mais intrínsecos de sua identidade enquanto artista. Planeta Fome é construído com revolta e celebração por uma artista sempre revolucionária e inovadora, que desta vez se reveste de futurismo para ousar ser esperançosa e imaginar dias melhores para nosso país, sempre encarando sem rodeios nossas duras realidades.
O furacão Elza Soares já se manifesta na abertura do disco com o evento que é Libertação. A parceria da artista com a grandiosidade musical do BaianaSystem – também conhecidos no Grammy Latino – se enlaça numa música que soa de forma quase profética. Ao abrir poderosamente a canção cantando “Eu não vou sucumbir” junto das guitarras e arranjos do grupo, Elza marca o futurismo que estabeleceu seus últimos trabalhos e anuncia todo o tom do disco, composto por memória crítica e esperança, com pés muito bem fincados no chão, olhos atentos avistando possibilidades para o nosso futuro e uma mente que incessantemente imagina e cria novos cenários a partir da arte. Não a toa, a faixa é uma das melhores do disco e indicada a Melhor Canção em Língua Portuguesa no Grammy Latino 2020.
Se tem futuro, também tem passado. Inclusive, misturados. É o que Elza faz no interlúdio Menino. “Venha cá menino, não faça isso não. Eu sei como é triste, não ter casa não ter pão. Não te leva a nada destruir o seu irmão. Você representa o futuro da nação” canta a sabedoria da artista em ritmo de samba suave digno de um aquece da bateria da Mocidade, que não deixa de ressaltar a importância da juventude para que nosso país tenha rumos melhores e que também nunca esquece suas raízes.
Desigualdade social é um dos principais temas do Planeta Fome, que é abordado enquanto a artista mescla sua tradição do samba com os solos de rock em Brasis. A canção é um exemplo perfeito da mudança de estilo muito bem sucedida que Elza vem apresentando nos últimos anos, migrando do samba para misturas de estilos com algo mais experimental.
Esta que, como toda boa experimentação, nem sempre apresenta um resultado completamente satisfatório, vide Blá Blá Blá. A faixa mantém a base de rock como a identidade contemporânea de Elza e não casa com o sample de Me Dê Motivos, de Tim Maia. Alocada num estilo muito diferente do de Elza na canção, a produção de Rafael Ramos não deu conta de amarrar o refrão apaixonado do rei com a canção de revolta da rainha, dueto que adoraríamos ouvir e que não precisaria de muita moda para ser incrível, mas que em meio a tantos elementos é a única mistura do disco que não funciona em sua totalidade.
Tem um Brasil que é próspero
Outro não muda
Um Brasil que investe
Outro que suga (…)Tem o Brasil que cheira
Outro que fede
O Brasil que dá
É igualzinho ao que pedePede paz e saúde
Trabalho e dinheiro
Pede pelas crianças
Do país inteiro
Planeta Fome também é terra de valorização da arte brasileira como um todo. Revisitando o artista que levantou sua voz contra a tirania do governo militar brasileiro entre os anos de 1970 e 1980, Elza empresta sua voz à Pequena Memória para um Tempo Sem Memória, originalmente cantada por Gonzaguinha em 1972. Em seu lirismo característico, Elza canta pela “legião que se entregou por um novo dia”, reverenciando na batida do seu samba todos aqueles que perderam suas vidas lutando pelos seus direitos.
Mais uma canção do artista ganha uma versão de Elza, que canta Comportamento Geral acompanhada de um reggae suave, limpando o paladar do rock experimental enquanto critica a passividade do brasileiro frente às injustiças. Num show de arquitetura sonora, é adicionada à faixa doses de música clássica que gradativamente transformam a atmosfera da canção, se iniciando num balanço tranquilo e terminando com um incômodo importante de ser sentido. “Você merece. Você merece. Você merece.” repete Elza seguida de sussurros de seus vocais que permanecem nos versos mesmo quando todo o instrumental se esvai, nos lembrando da responsabilidade que temos com a nossa realidade.
Criticidade é o que não falta em Elza Soares. Assim, nem tudo do passado do Planeta Fome é exaltação. Em Tradição a sabedoria de nossa rainha dá um outro recado: “Desparafuse a construção. Descontinue a tradição. Desaproprie esse galpão. (…) Se jogue em meio a confusão.” Recomendando o que a própria vem fazendo nos últimos anos, ela canta ainda em meio as cordas clássicas num ritmo nostálgico: “No colorido da avenida, se jogue nesse turbilhão.”
É claro que ela sabe o que conservar, e relembrando a fé que ela tem em si mesma também sua própria história é que Elza canta Virei o Jogo. Reforçando mais uma vez seu compromisso com a luta pelo fim da violência contra a mulher, ela cria um louvor à resistência num hino dessa vez é quase universal, se opondo a uma série de injustiças e desumanidades com o refrão “Não descarrega sua arma em mim, a sua raiva não vai me abater. Você é não, eu sou um milhão de sins. Tenho meu povo pra me proteger.”
O quê de MPB que por tanto tempo fez sucesso na arte de Elza aparece no romantismo de Lírio Rosa, fazendo com que o Planeta Fome não seja só composto por denúncia e revolta. Em dedilhados de violão aconchegantes, a faixa tem um caráter acústico e minimalista atenciosamente arquitetado que em nada destoa do restante do álbum. Suavizando a força de sua voz, Elza se descobre apaixonada numa canção que engloba o amor muito além do romântico.
Nessa vibe mais suave é que aparece mais visivelmente a esperança que a artista nutre pelo futuro. Tudo o que a rainha deseja para o nosso país é cantado em País do Sonho. A utopia de Elza é repleta de sua guitarra característica, que aqui cria algo entre o samba e o funk. À essa mistura, ela ainda manteve a sutileza de seus instrumentos clássicos, mais uma vez, numa mistura única que só poderia surgir de Elza Soares.
Além de memorar de uma maneira muito forte o início de sua carreira, Planeta Fome conserva todos os elementos da identidade de Elza, já figurados em sua vasta discografia. Entretanto, dentre todos eles, um se destaca: o que fez a artista se atualizar no cenário da música popular brasileira em 2015, com o icônico, poderoso, inovador e aclamado Mulher do Fim do Mundo. O disco inaugurou uma era mais moderna e experimental da artista, continuada com a ousadia de Deus é Mulher (2018), também indicado ao Grammy Latino.
Já não precisamos mais explicar a potência que é Elza Soares. Mesmo depois de décadas e décadas de carreira e com a saúde debilitada a artista consegue se reinventar, atrair novos públicos, permanecer nos ouvidos dos mais velhos e se instaurar no imaginário dos mais jovens. Estar presente na história do Brasil pra sempre, revelando realidades mascaradas, representando e acalentando corações marginalizados e ajudando a imaginar futuros melhores é tudo o que a Mulher do Fim do Mundo quer, e realiza como ninguém. “Me deixem cantar até o fim” ela suplica na faixa-título de um dos melhores álbuns de sua carreira e da música brasileira dos últimos anos, lançado há 5 anos. Como se precisasse pedir. Tudo o que nós queremos é ouvir e celebrar a rainha do Planeta Fome – que pasme: em muito se assemelha ao nosso Brasil – até depois do fim.