Esther Chahin
“É como atravessar o espelho para o País das Maravilhas. Você entra nos bailes e sente-se 100% bem em ser gay. Não é assim no mundo, e deveria ser”
– Paris is Burning
Madonna, Ryan Murphy, RuPaul e diversos outros nomes influentes da cultura pop inspiraram-se na mesma fonte para criação de alguns de seus trabalhos. Estamos falando da cultura Ballroom, que dominou a cena afro-descendente, latina e LGBTQIAPN+ da periferia nova-iorquina em meados da década de 1980. As diversas categorias que compunham os bailes e parte das narrativas sensíveis dos membros da comunidade queer à época são expostas no documentário Paris Is Burning. Lançada em 1991, a obra foi produzida e dirigida pela cineasta Jennie Livingston, obtendo seu reconhecimento com prêmios como Teddy Award, no Festival de Berlim, e de Melhor Documentário, no Festival de Sundance.
Com Paris Is Burning – de fato – atravessamos o espelho para o País das Maravilhas. Jennie Livingston mostra-se capaz de recriar a atmosfera onde os salões dos bailes estavam submersos. Seja com a voz de Cheryl Lynn em Got to Be Real, imagens das boêmias ruas nova-iorquinas ou a constante narração dos desfiles pelo extravagante Junior LaBeija, o documentário é uma viagem no tempo. Ao assisti-lo, nos sentimos mais próximos do que nunca do glamour oitentista. Quem aprecia a produção é, inclusive, presenteado com inúmeros trechos dos bailes. Livingston expõe imagens de cada uma das categorias – desde as representações mais legendaries às brigas ocasionadas por críticas a determinado figurino.
“Lembro do meu pai dizer ‘você é um homem, negro e gay, vai ter muitas dificuldades. Se realmente quiser fazer isso, terá que ser muito mais forte do que imagina’” é a fala que abre o documentário. Nas cenas seguintes, uma série de conceitos é apresentada ao espectador. As explicações para cada um deles, por sua vez, são dadas por meio dos depoimentos de personalidades já experientes na Ballroom Culture, como Dorian Corey, Venus Xtravaganza e Pepper LaBeija. Através das palavras enunciadas por tais figuras, conhece-se os enredos que envolviam aquela cultura, cujas características assinalam os mais profundos anseios de uma comunidade marginalizada socialmente.
No Harlem oitentista, a população LGBTQIAPN+, privada de determinados papéis sociais, desenvolveu diversas ferramentas para que pudesse, ainda assim, desempenhá-los. Foi o mecanismo encontrado para, minimamente, aproximarem-se de privilégios dos quais a burguesia branca daquele país tranquilamente usufruía. Trata-se, por exemplo, das houses, Voguing e categories. As houses visavam criar um ambiente de acolhimento, semelhante a uma estrutura familiar; no Voguing, simulava-se, principalmente, as poses da revista – veículo de imprensa atrelado às marcas de luxo – e, por fim, as categories permitiam que os participantes se vestissem e se comportassem da mesma forma que personalidades de prestígio da sociedade, como figuras de Hollywood, sex-symbols e executivos de empresas.
A cultura e as habilidades eternizadas por Paris Is Burning seguem inspirando gerações de artistas. Em 1990, Madonna lançava Vogue – um grande clássico da música pop – com letra, coreografia e videoclipe inspirados na prática do Voguing. Já em 2009, estreava na TV estadunidense o reality show Rupaul’s Drag Race, responsável por popularizar grande parte dos bordões e expressões comuns no interior das balls. Por fim, em 2018, Ryan Murphy, idealizador de obras marcantes, como American Horror Story e Glee, baseou-se no próprio documentário e nas personalidades nele expostas para criação de Pose, série renomada, vencedora de um Emmy e um Globo de Ouro.
Paris Is Burning também foi um precursor para representação queer na Sétima Arte. Na mesma década de lançamento da produção, outras obras-chave da cultura LGBTQIAPN+ estamparam os cartazes dos cinemas. Estamos nos referindo, por exemplo, a Priscilla, a Rainha do Deserto (1994), cujas personagens principais são duas drag queens e uma mulher transsexual. Além desse título, Stonewall (1995) protestou ao retratar as batalhas cotidianas da comunidade LGBTQIAPN+ às vésperas da Rebelião. Com a mesma relevância, A Gaiola das Loucas (1996), pôde provar que famílias existem nas mais variadas configurações. Nele, a divertida trama gira em torno de um casal gay e seu filho.
A faceta mais trágica do documentário, no entanto, reside na breve vida de grande parte das personalidades abordadas nele. Venus Xtravaganza, por exemplo, sofreu um brutal assassinato antes mesmo das gravações de Paris Is Burning se encerrarem. Outras duas figuras centrais da obra, Angie Xtravaganza e Dorian Corey, faleceram em 1993, dois anos após o lançamento do documentário, em função de complicações da Aids. Por outro lado, houve aqueles que alavancaram suas carreiras após a produção: Octavia St. Laurent se aventurou no Cinema e Willi Ninja tornou-se um coreógrafo renomado mundialmente.
A obra carrega sua exuberância, porém, em Paris Is Burning, Jennie Livingston limitou-se às explicações da Ballroom Culture. A cineasta dispunha dos depoimentos de protagonistas daquela cena, mas pouco examinou o rico acervo de enredos que tinha em suas mãos. A falha se acentua ainda mais ao considerarmos que, à época, agravava-se a crise da Aids, cujas consequências alterariam amplamente os rumos da luta LGBTQIAPN+. O sofrimento da comunidade em função da doença sexualmente transmissível ou dos preconceitos acarretados por ela, foi minimamente abordado no documentário. Com a produção, nos aprofundamos no circuito dos bailes, mas não nas figuras que o construíram – o que, inclusive, resultou em vários conteúdos on-line que visam compreender as trajetórias de personalidades da Paris em chamas.
Embora, anos depois, tenha sofrido acusações de reafirmar estereótipos da comunidade queer sob o olhar de uma mulher branca e cisgênero, o registro de Livingston foi fundamental na visibilização de uma população completamente às margens da sociedade. O documentário levou a cultura Ballroom às massas: por meio dele, muitas das características da cena foram popularizadas, de modo a atingir diversas gerações de membros da comunidade LGBTQIAPN+ ao longo dos anos. Os bordões divertidos, as formas de resistência e as narrativas resilientes embutidas em Paris Is Burning contribuíram para o orgulho queer, sendo indispensável que nos mantenhamos fiéis à nossa própria identidade.