Ana Cegatti
As noitadas paulistanas sempre soaram como um chiado irritante para os que estão acostumados a levantar a cabeça e enxergar, sem dificuldades, o azul do céu. É como se as buzinas responsáveis por matutar uma pressa assídua nunca estivessem na mesma frequência das galinhas que cismam, ou melhor, ciscam incansavelmente diante de um tédio infinito. Afinal, aquilo que se escuta na metrópole é mero barulho ou pode ser tão íntimo quanto uma conversa entre crianças interioranas na sarjeta? Em 2019, a cantora e compositora YMA juntou o melhor dos dois mundos em seu álbum de estreia, Par de Olhos, ao criar um cenário no qual os sons artificiais da cidade grande são, literalmente, música para os ouvidos dos que temem sair da moita e se revelar demais diante das luzes vermelhas metropolitanas.
“À noite de um jeito, de dia de outro” é a frase do clássico filme Shrek (2001) que possibilita caracterizar o disco lançado pelas gravadoras Matraca e YB Music por um único adjetivo: multifacetado. Quando o Sol faz ferver o asfalto das ruas de São Paulo, a musicista paulistana se apresenta como Yasmin Mamedio, porém, assim que a Lua obriga o bairro da Liberdade a ligar as lanternas, YMA brilha com elas. Seria medíocre discutir qual é a verdadeira identidade da musicista, até porque um ser humano com uma única cara é chato; com duas é falso e com três ou mais é artista. Diferentemente da animação da DreamWorks, o álbum não define o ato de assumir diferentes formas como um feitiço maligno, mas como um processo cuja magia está em abraçar a mutabilidade e, sobretudo, a incompletude.
Estar dividido em pedaços não é estar quebrado. Na verdade, é movimentar-se na direção oposta à monotonia difundida por aqueles que não ficam bem de franja. Coproduzido por Fernando Rischbieter, Par de Olhos foi incluído na lista de discos do ano da Associação Paulista de Críticos de Arte de 2019 e, além disso, conquistou seu espaço na luta contra o pensamento caduca de que não se faz música nacional de qualidade como antigamente. Tal raciocínio, aliás, não passa de uma tentativa de vangloriar os costumes de uma época na qual a homossexualidade era doença e Roberto Carlos, grande nome da cena musical brasileira, era ficante sério da ditadura. No fim, YMA foi capaz de sustentar uma franja e trazer de volta somente as partes boas e arejadas dos anos 1980.
O sentimento de nostalgia parte, assim como quase tudo na vida, da noção de falta, e provocá-lo não é uma tarefa fácil, uma vez que demanda equilíbrio entre o desejo pela volta e a aceitação da partida. O primeiro álbum de Mamedio precisou de apenas 26 minutos para fazer o que muitos nunca conseguiram: despir-se, em vez de fechar-se, diante da perda. Pode-se dizer que a obra é uma passagem só de ida para um mundo onírico oitentista o qual não oprime minorias e, ainda por cima, não demoniza a intimidade, nem a vulnerabilidade. Pelo contrário, o disco crava uma estaca no coração, abrindo-o por completo. Essa ação, apesar da história tradicional discordar, não mataria um vampiro, mas o tornaria humano.
YMA já se aventurava pelas tortuosidades dos ritmos minimalistas e das letras sensíveis antes mesmo de lançar seu primeiro álbum. Sabiá, single de 2017, e Summer Lover, fruto de uma colaboração com Gab Ferreira, forraram o estômago antes do banquete que, mesmo depois de anos, parece não ter sido totalmente digerido. É difícil engolir uma obra repleta de medos, angústias e confissões. Por outro lado, é impossível sequer experimentar um disco frio e sem sal, ou melhor, sem elementos que o aproxime até do mais chato dos paladares.
Composto por oito pratos temperados com arranjos de guitarra e sintetizadores, Par de Olhos é um choque, daqueles que arrepiam os cabelos e alteram a trajetória de um corpo cuja estaticidade era, até então, inabalável. A primeira faixa, Evaporar, é propositalmente traiçoeira: vai da timidez à explosão usando uma melodia com notas pautadas, a princípio, no marasmo. Este, no entanto, não passa de um truque praticado na medida certa para desmamar os acostumados a beber o puro suco da previsibilidade. Em outros termos, a entrada do álbum nos convida a sentir o sabor agridoce do incontrolável, responsável por transformar experiências aparentemente inofensivas em histórias dignas de nostalgia.
Análises reféns da materialidade e de verdades rigorosas não têm espaço em uma obra que é, acima de tudo, uma ode ao indescritível. A quinta música, Sun and Soul, evoca o almejo pelo transcendental, além de criar uma atmosfera na qual ter consciência da efemeridade das coisas não estraga o dia de ninguém, e sim o transforma em um palco pronto para receber um show de improvisos. YMA e Lauckson José, do projeto Lau e Eu, fazem da composição uma carta destinada ao amor ardente de verão que, assim como tudo, passa. Apesar disso, vale a pena se expor, tanto ao Sol, quanto às luzes artificiais encarregadas de iluminar quartos e testemunhar demonstrações de intimidade as quais acontecem, inclusive, na sempre nublada São Paulo.
Além de Sun and Soul, outras duas faixas do álbum também têm letras inteiramente feitas em inglês. O uso de uma língua estrangeira pode acontecer por diversos motivos, a exemplo da superação do limite nacional, mas existe uma possível razão mais poética: a exposição em português é nua e crua, ou seja, possui uma força própria que arrebata o ouvinte sem sequer oferecer-lhe uma almofada para amenizar o baque. Portanto, a escolha pelo inglês serviria como um biquíni fio dental e deixaria as partes íntimas das músicas expostas somente até certo ponto. Tal fato acarreta em uma essência provocativa que torna o disco um ensaio sobre o olhar afetivo cujo panorama capta o oculto e o não dito.
No começo da festa organizada por YMA, a imprevisibilidade nos recepciona e apresenta suas companheiras de prefixo: incerteza e inconstância. As duas tagarelam sem parar em nossos ouvidos. Porém, quando a noite parecia perdida, a intimidade chega e nos puxa para longe. Logo depois, ela revela que pode ir embora da festa a qualquer momento, tornando em vão nosso contato. Diante da sequência de frustrações, um nó se cria na garganta. A língua inglesa até tentou desamarrá-lo, mas as lágrimas só sabiam português, e, portanto, protagonizaram Pequenos Rios, a despedida do álbum que é ironicamente inimigo do fim.
Yasmin Mamedio teve o tato de transformar até o mais cético dos interioranos em alguém disposto a ouvir o que os sons da metrópole têm a dizer. “Não se acha a paz evitando a vida” é um tabefe dado por Virginia Woolf nos que se escondem atrás do silêncio. Este, por sua vez, não vê a hora de ser assassinado por sussurros eróticos, falas ambíguas e gritos melancólicos. Embora amores possam se esvair no piscar de um Par de Olhos, nenhuma invenção fantasiosa, como vampiros ou estabilidade emocional, supera o caráter onírico de encontros despretensiosos. O disco é uma homenagem ao acaso, protagonista da nossa jornada de altos e baixos à procura de coisas que, no fim, estão bem debaixo do nosso nariz.