Nathalia Tetzner
A história contada por Pantanal é atemporal e se confunde com uma moda sertaneja que há décadas emociona peões: “ele tinha um cavalo preto por nome de Ventania e um laço de doze braças do couro de uma novilha”. Desde a primeira exibição da novela, em 1990, até o remake em 2022, a trama pouco mudou, ainda que o Brasil, acumulador de uma quantidade exorbitante de gado, tenha sofrido grandes transformações. Ao som da mesma canção, o ‘Véio’ Joventino cavalgou país afora até um dia sumir e deixar seu filho José Leôncio para trás. Ele, bicho do mato, se meteu com uma moça da cidade e da união nasceu Jove, o primeiro herdeiro sem padrão de boiadeiro que chegou para “cutucar a onça com vara curta”. Da luta entre humano e felino, a novela reviveu o seu destino.
Originalmente, a música responsável pela abertura icônica foi entoada por Marcus Viana e sua voz pulsante. Dessa vez, no entanto, Maria Bethânia e Almir Sater adicionaram frescor e serenidade ao instrumental, atribuindo, assim, um sentimento de pertencimento em um futuro que constantemente clama pela nostalgia do enredo; se os nossos pais assistiram o folhetim há 32 anos e nós no ano passado, “os filhos dos filhos…dos nossos filhos” certamente também verão Pantanal. Mantendo o sentido da árvore genealógica, a nova roupagem foi adaptada por Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa, o escritor da versão que virou um clássico e se mantém atual graças a ambientação, feita em um bioma que traduz tão bem a resiliência e diversidade da nação através de sua fauna e flora.
Diferentemente do contexto de consolidação das telenovelas na época em que o texto estreou – quando a extinta Rede Manchete emplacava clássicos como Dona Beija e Kananga no Japão -, a refilmagem da TV Globo herdou o fracasso de Lícia Manzo com Um Lugar ao Sol, drama inédito em dois anos e o primeiro a ir ao ar totalmente gravado após uma sequência de repetições causada pela pandemia de coronavírus. E, por isso, assumiu a árdua tarefa de reerguer a audiência e chamar o público jovem para sentar no sofá e assistir à Televisão – um desafio para os dias atuais. A tentativa não foi falha: a direção composta pelos nomes Davi Lacerda, Noa Bressane, Roberta Richard, Walter Carvalho e Cristiano Marques soube desde a claquete inicial como atingir em cheio o seu público-alvo.
Em um ato que soou como o cantar de um passarinho recém-nascido, que fez sentir a brisa fresca que sopra à beira-mar, o núcleo central da faixa nobre foi finalmente deslocado do ciclo vicioso fundado no uso de cenários divididos apenas entre as grandes capitais da economia e do entretenimento brasileiro, São Paulo e Rio de Janeiro. Com audição e tato apurados, a direção artística de Rogério Gomes e Gustavo Fernandez capturou em cena as cores vívidas ainda não totalmente descobertas pelo espectador e, desse modo, os prédios cinzentos da Avenida Paulista e as enormes mansões do Leblon foram deixados para trás em meio ao resgate de um passado mais simples e condizente com a realidade sociocultural do país.
Como toda novela de respeito, Pantanal foi dividida em duas fases não somente com a intenção de demonstrar a passagem de tempo, mas também de desenvolver o conflito principal da trama e transformar as suas personagens. Acontece que a atuação excepcional do elenco jovem conseguiu surpreender e fidelizar o público em poucas semanas de exibição, sendo extremamente difícil se desapegar das faces que se tornaram tão familiares. Renato Góes e Bruna Linzmeyer nos corpos de José Leôncio e Madeleine construíram uma tensão cortante digna de protagonistas imponentes. Já Letícia Salles, estreando como atriz, roubou os holofotes e entregou uma Filó forte para Dira Paes. Por outro lado, Malu Rodrigues e Gabriel Stauffer carregaram a melhor versão dos antagonistas Irma e Gustavo.
Porém, se a região pantaneira ainda não havia sido habitada por camaleões, tudo mudou com a chegada de Irandhir Santos, a quem se deve a maior aclamação artística. Na pele do ‘Véio’ Joventino, o ator externou as marcas de uma trajetória vivida no lombo de cavalos com um berrante em mãos e, em uma escalação tão peculiar quanto a linhagem da série Dark, ele voltou para a segunda fase do enredo como o neto bastardo José Lucas de Nada, dono de uma personalidade completamente distinta e, não por isso, mal interpretada. Mesmo que apegados aos atores, a brilhante transição não deixou a animosidade dos noveleiros cair. Marcos Palmeira, Karine Teles, Camila Morgado e Caco Ciocler conduziram o texto até o seu clímax.
O remake do clássico trouxe de volta os clichês intrínsecos ao gênero e que, há tempos, estavam sumidos. Isso porque as produções sofreram uma mudança brusca de tom e passaram a adaptar a estrutura para o drama ‘pé no chão’ das séries, modelo repercutido pelo avanço dos streamings, incluindo a própria Globoplay. Exibida em 2019, A Dona do Pedaço, de Walcyr Carrasco, foi a última obra antes de Pantanal que teve direito a coincidências improváveis e uma dose de humor cavalar. Para a surpresa de quem subverteu o formato novela, o carisma um tanto quanto utópico da mulher que vira onça, do homem que é possuído por uma entidade muito boa de viola e do senhor de idade que se transforma em sucuri foram suficientes para eternizar os personagens em memes nas redes sociais.
Desde a irritação de José Leôncio com “larga a mão, Filó”, passando por Ari na comunicação com a fazenda em “Pantanal, na escuta? Câmbio”, e a vontade de fugir de Juma com “querimbóra”, os jargões ganharam espaço no cotidiano. Foi graças às expressões marcantes dos protagonistas e a adesão da juventude, agente controlador da popularização pelos meios, que a novela se tornou um fenômeno multimídia. O retorno das cenas dos próximos capítulos nos minutos finais também ajudou no resgate do gênero de folhetim. O aspecto foi extinto da TV Globo justamente pela exibição de Pantanal na Rede Manchete. A sua volta diminuiu a pressão para encaixar um gancho e aumentou o desejo de continuar assistindo com apenas alguns relances, mantendo uma ordem natural dos acontecimentos.
O diretor geral Walter Carvalho também assinou a Fotografia do remake. Vívida, esplendorosa e natural, a ilustração da região manteve uma característica autoral por todos os cenários, tenham sido eles a grande fazenda dos Leôncios ou a simples tapera dos Marruá. Ainda que rodeado de beleza, Carvalho não deixou de demonstrar o drama da violência no campo, tópico recorrente do enredo, com a mesma sensibilidade. Por meio de tons frios, o ciclo de destruição causado pela especulação latifundiária, que se alastrou pela trajetória de Gil (Enrique Diaz) e Maria Marruá (Juliana Paes), colocou em debate a luta pela terra. É tal composição visual que une as duas famílias principais da novela, quando os agricultores se apropriam de um canto abandonado pelos peões.
Juma (Alanis Guillen) chegou ao mundo tida como uma maldição pela mãe, desorientada depois da perda de três filhos para os senhores da agropecuária brasileira. Porém, o destino em forma de sucuri despertou a onça que defendeu a sua cria até a sua segunda morte, quando já encantada no corpo do felino pintado. Em busca de vingança pelo pai, dono de um pedaço de terra vendido ilegalmente, Muda entrou na trama para confundir os sentimentos da filha de Marruá, criada para se defender de tudo, menos do amor. Assustada pelo instinto animal que farejava as suas mentiras, incluindo a farsa acerca da falta de voz, a personagem falou através do olhar intenso da intérprete Bella Campos e, em sincronia com Guillen, consagraram-se em uma dupla imbatível: “não fala nada, Muda”.
Outra forma de violência que pautou o roteiro foi a agressão física e psicológica enfrentada por Maria Bruaca (Isabel Teixeira) nas mãos do seu esposo e grande vilão de Pantanal, Tenório (Murilo Benício). Ao contrário da ficção, em que o apelido pejorativo marcou as falas das personagens, no ‘dia a dia’, os noveleiros se simpatizaram com a representação brutal e adotaram um apelido carinhoso, ‘Mary Bru’. Ela, inicialmente tida como uma personagem secundária, ganhou espaço de protagonista graças à interpretação fascinante de Teixeira ao lado de Benício, ambos incoerentemente unidos no mesmo tom em cena. Galã de muitas gerações, ele se desfez da face icônica de ‘mocinho’ e se transformou em um ser humano cruel.
Contudo, se os pais causaram uma mistura de sentimentos, os filhos do casal e da outra família do antagonista foram insuportáveis, não havendo a mínima chance do público nutrir algo por eles para além do desprezo, com destaque para a chatice apoteótica de Guta ‘regatinha’. Bruno Luperi, na tentativa de modernizar a narrativa, errou a mão na construção da personalidade da jovem e deu uma bomba para a atriz Julia Dalavia segurar. Ainda nessa questão, o autor conseguiu reescrever a trajetória de Zaquieu (Silvero Pereira), mordomo que se apaixona pelo peão Alcides (Juliano Cazarré). Mas a assombração da heteronormatividade permaneceu no discurso, no qual ele e Jove (Jesuíta Barbosa) foram frequentemente enquadrados como ‘frozô’ e o repúdio de José Leôncio ao ato dos boiadeiros não colou.
Assustadoramente encantador e possuído por um ‘cramulhão’ que fez magia com as cordas da viola, o peão Trindade (Gabriel Sater) parou o coração do público e de Irma (Camila Morgado). O casal, no entanto, foi injustiçado por um fim desanimador motivado pelo interesse da ruiva em José Lucas de Nada. O ator, filho de Almir Sater, repetiu o papel que na versão original era do pai e dividiu a cena uma última vez com ele em Pantanal; dessa vez, na pele do chalaneiro Eugênio, em uma batalha de Música fervorosa que arrancou lágrimas e arrepios. Em meio a simplicidade deslumbrante da natureza, momentos como este jogaram de um precipício as passagens tenebrosas no urbano do Rio de Janeiro, felizmente deixadas de lado ao longo dos meses.
Mergulhando nos altos e baixos dos romances de Pantanal, é perceptível o quanto o remake se esforçou para provar que “a maior força da natureza é o amor”. José Leôncio e Filó provaram que o tempo realmente cura tudo. Já Muda e Tibério se encontraram em um cenário nada esperançoso e trouxeram para as telas a doçura de um enlace verdadeiro. Por outro lado, Tadeu (José Loreto) e Zefa (Paula Barbosa) superaram as diferenças de valores que os separavam para ficarem juntos. Entretanto, nenhum casal expressou com tanta fidelidade o slogan apaixonado quanto Maria Bruaca e Alcides em busca da liberdade que somente o bioma fértil pode proporcionar, após a violência covarde de Tenório contra o peão que protagonizou o momento mais chocante da trama.
Na pele de Tadeu, José Loreto surpreendeu com uma atuação que fez parecer que o personagem foi escrito especialmente para ele. Ao lado de Dira Paes, o ator concretizou o feito extremamente difícil de não ser engolido pela aura de uma das veteranas mais experientes da dramaturgia. Confrontados com diálogos duros e secos, Loreto e Paes afloraram o lado sentimental de quem assistiu diariamente a relação genuína entre mãe e filho. De filho bastardo a sucessor natural do legado de boiadeiro do avô Velho Juventino, Tadeu muitas vezes brigou sozinho pela atenção do pai até o seu encontro com o ‘Véio do Rio’ no último cápitulo: “Você não ganharia a minha sela de prata se não fosse um Leôncio. […] Diz pra ele que eu disse que ocê é o meu neto de amor”.
Responsáveis por manter o coração de Pantanal batendo forte, Juma e Jove foram, mais do que nunca, os grandes protagonistas da novela. Em 2022, assistir o encontro do casal foi como presenciar o embate entre felino e humano. Ela, nascida livre como um ser selvagem na imensidão da natureza, e ele, criado na redoma de vidro de uma mansão luxuosa, mas sem vida. Embalados pela música-tema Amor de índio na voz de Gabriel Sater, a união desses dois opostos fez o amor se consagrar como sagrado. Em harmonia com o verde do bioma e o vermelho da paixão, a dupla Alanis Guillen e Jesuíta Barbosa trouxe o frescor da descoberta de algo novo: uma química delirante, estrondosa e arrebatadora digna de reportagem do Fantástico.
“O homem é o único animal que cospe na água que bebe. O homem é o único animal que mata para não comer. O homem é o único animal que corta a árvore que lhe dá sombra e frutos. Por isso, está se condenando à morte…” – Benedito Ruy Barbosa
A entidade ‘Véio do Rio’ foi a personificação do remake. O ator Osmar Prado trouxe para a composição a força da sabedoria de quem conhece o bioma, fala com os animais e espalha o amor. Único capaz de laçar um marruá, espécie de boi feroz, ele também foi o fator responsável por arrematar as histórias das famílias Leôncio e Marruá em uma só trajetória. Entre as paisagens belas e o desmatamento impiedoso, a novela de Bruno Luperi reergueu a audiência do gênero, fez jus a versão original de seu avô e reviveu o destino. Atemporal, é um dever que Pantanal seja adaptada novamente no futuro, assim, repetindo um ciclo fundamental: “Redescobrindo as Américas quinhentos anos depois/Lutar com unhas e dentes pra termos direito ao depois/Fim do milênio, resgate da vida, do sonho, do bem”.