Davi Marcelgo
O ano de 1983 foi marcado pela regulamentação do futebol feminino no Brasil, prática proibida desde 1941, na Era Vargas. Aquele ano também foi sublinhado por Onda Nova – Gayvotas Futebol Clube da dupla Ícaro Martins e José Antonio Garcia, filme produzido no polo cinematográfico Boca do Lixo e exibido pela primeira vez na 7ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, há 41 anos. Em 2024, o filme ganhou restauração graças à seleção para o Festival de Locarno (Suíça) e à união do trabalho da Cinemateca Brasileira junto à Martins, à família de Garcia e outros artistas e colaboradores. Além disso, teve duas sessões na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na seção Retrospectiva.
Do gênero pornochanchada, o longa censurado pela Ditadura Militar é vibrante, seja nas cores ou nas histórias de cada personagem. Em 100 minutos, é possível amá-los, rir com eles e chorar. Mas estes sentimentos só podem ser sentidos porque os diretores dedicam inúmeras cenas – quase o filme todo para além do gramado – ao cotidiano e às relações amorosas do time e seus amantes. É difícil dar uma sinopse; seria uma história sobre emancipação feminina no futebol? Seria a descoberta da sexualidade? Ambos, mas sem dúvidas, se trata das peripécias de um grupo de amigos que se divertem e estão com os hormônios à flor da pele.
O corriqueiro é mergulhado em um realismo que apoia e contrasta com o visual berrante. O sexo é natural, seja com homem ou mulher; não tem espaço para gemidos irreais ou qualquer outro estímulo da pornografia hardcore. A experiência sensorial é guiada por dedos que passeiam por corpos, línguas que deslizam das costas para as nádegas e, principalmente, pelo vínculo entre público e personagens. É quase inacreditável que uma produção da década de 1980 seja dotada de tanto afeto e compreensão de casais homoafetivos. Aliás, bem mais que um entendimento da existência desses pares, é o reconhecimento da trivialidade.
No banco traseiro de um táxi, nua, antes de transar com sua namorada, uma das personagens diz que “prefere sonhar”. A frase, por fim, ilustra a dinâmica entre espectador e filme, afinal, Cinema também não é sonho? É vestir a carcaça de vidas que não são suas, que você gostaria de viver e, quem sabe, morrer sendo assim. O contraste das cores, das roupas futuristas e oitentistas, e dos penteados ousados em relação à narrativa real compõem essa visão onírica desses personagens. Eles ‘trepam’, tomam cerveja à tarde, ouvem Michael Jackson, cantam Rita Lee, frequentam bares à noite e são sexy. É uma utopia gay, ainda mais no contexto que se insere.
Embora haja uma antítese entre real e ficção, o visual e a forma contribuem para a história, porque, embora a maneira como o sexo é filmado seja ‘banal’, as personagens e o enredo são excêntricos; uma juventude invejável e uma resposta para a opressão da ditadura, que já estava enxergando seu fim. Filmar as relações carnais deste modo, é, sem dúvidas, seguir os códigos do gênero, sobretudo, escancarar para a onda conservadora que nada disso é condenável ou antinatural, mas humano. Helena (Tânia Alves) canta que “agora vale tudo” e, realmente, em Onda Nova, tudo vale e nada é julgado ou moralizado.
Ao final de Onda Nova – Gayvotas Futebol Clube você vai querer fazer parte do time, jogar uma ‘pelada’, praticar adultério e conhecer muito mais dos amigos. Mas também vai lamentar, e muito, porque a pornochanchada teve uma vida curta e o vulgar desapareceu do Cinema popular, seja no Brasil ou no mundo. Atualmente, o sexo – quando tem – é curto, pragmático, sem tesão e as personagens LGBTQIAP+ são unidimensionais ou estereotipadas. A questão é que houve uma higiene nesse tipo de produção, claro que há motivos maiores como denúncia de abuso em sets, porém, majoritariamente tudo serve aos padrões de mercado. Felizmente, a história está sendo resgatada, é tempo de vestir o uniforme e hora de Gozar Outra Vez.