Egberto Santana Nunes
Em uma remota ilha isolada no norte da Inglaterra do século XX, um jovem é contratado para ser zelador de um grandioso e obscuro Farol. Em meio à agitada e vazia água do mar, sua única companhia durante a estadia é o chefe, o dono e cuidador da casa de luz. A simplicidade da trama escrita e dirigida por Robert Eggers é palco para uma agoniante história de horror cujo mote central é a relação tensa e hipnotizante dos dois faroleiros obsessivos pelo alucinógeno Farol. Este é o segundo longa do diretor do aclamado A Bruxa, um dos pilares do “novo horror”.
Mesmo esnobado pelo Oscar, reconhecido apenas na categoria de melhor fotografia, o longa vem colecionando prêmios por onde passa e aumentando seu hype. Começou cedo, na estreia mundial de Cannes, levando o prêmio de Melhor Filme da Fipresci – Federação Internacional de Críticos de Cinema. No Independent Spirti Film Awards, abarcou cinco indicações, sendo elas melhor diretor, ator e ator coadjuvante, fotografia e montagem.
O seu “hype” também vem do intérprete do protagonista, o dispensa-apresentações-novo-Batman Robert Pattinson, na pele do ex-lenhador e agora zelador em busca de grana Ephraim Winslow. A escolha da DC/Warner para viver o novo homem morcego fez com que os fãs de quadrinhos entrassem em pânico, mas a crítica abriu os olhos. Depois do fenômeno pop da saga Crepúsculo, Pattinson pôde escolher trabalhos mais autorais e independentes, sendo O Farol um desses, caracterizado por uma narrativa de um espaço só, filmado com película de 35 milímetros, preto e branco granulado e na proporção de tela 1.19:1.
Se por um lado temos um queridinho de Hollywood, na outra trincheira é Willem Dafoe que dá as caras. O grande favorito da crítica e das premiações (esteve no Oscar em 2018, por O Portal da Eternidade e 2019 com Projeto Flórida, porém, saiu de mãos vazias), é Thomas Wake, o único permitido a ter contato com o Farol, enquanto Winslow limpa a estadia dos dois e repõe o carvão para energizar o local.
Entre tantas tentativas de definir um gênero este filme, talvez a mais cabível seja um “filme de ator”. A sensação é dos dois estarem no limite de cada um, fazendo o máximo que o roteiro pede, do possível ao impensável. Compramos cada bebida, briga, discussão e alucinação performada pelos dois astros.
Dafoe está sujo, fedido, enquanto Pattinson cresce (ou decai) durante as 4 semanas de serviço no Farol, ficando exatamente igual à peça que ele desprezava e temia: sujo, fedido e agora, lunático. Crítico do método do ator, Pattinson incorpora apenas quando as luzes estão ligadas, porém admite em entrevistas que os extremos do personagem foram alcançados também fora dos palcos. Dafoe, por exemplo, comentou ter ficado receoso que seu parceiro vomitasse realmente em cima dele durante algumas cenas. Houve até ingestão de lama.
A sintonia dos dois cria uma potência única no filme e a força motriz que resta como antagonista é o poder da natureza. Se em muitos momentos do filme, a lembrança que temos é a da masculinidade na sua mais pitoresca forma, a tempestade incontrolável chega para atormentar e destruir o ambiente, impactando diretamente no clímax de cada personagem – assim como da própria história.
A escolha pela estética bicolor casa perfeitamente com a atmosfera do cenário, densa e imersiva. É a filmagem de um conto único, tirado de um novo mundo. Ao mesmo tempo que entramos na história, optar pelo aspecto da proporção de tela 4:3 é chamar atenção para o próprio aparato escolhido: o cinema. Eggers consegue, com maestria, referenciar os clássicos que servem como inspiração, ao mesmo tempo que constrói algo novo e imersivo.
No texto – escrito em parceira com seu irmão Max -, Eggers também apela para velhos clichês, mas dentro do controle de sua atmosfera, levam outros tons. A diversidade de gêneros se encontra aqui: não é de se esperar piadas de peido, brigas de bêbados, quebras de clímax com efeito humorístico numa proposta de terror. Há uma certa aproximação entre o efeito cômico e o horror situacional do ambiente. A sensação é o riso de nervoso, de desconforto e do inacreditável.
A câmera carece de cortes, apenas em momentos onde a intenção é transmitir a imaginação para as telas, e quando isso acontece, há uma explosão de todos os elementos técnicos ao pico do clímax: som, cortes rápidos, iluminação e a própria ação dos personagens. É uma linguagem visual que toma conta de todos os detalhes. De resto, o diretor se preocupa em caminhar tranquilamente pelo ambiente, concentrando quase todos os takes num plano conjunto dos dois, iluminados pela lamparina no centro da mesa – quando não está focando o rosto como um retrato dos atores. O horror também é alcançado na edição de som, incômoda tanto para os personagens quanto para o espectador. A ausência de silêncio, juntamente com a fotografia, culmina no efeito claustrofóbico presente durante o filme.
A iluminação é controlada, e a impressão de estarmos assistindo um captação documental e não uma mera ficção é certeira. A sombra engrandece e anima os personagens. Seu aspecto gótico e o natural uso de luzez e sombram lembram clássicos do expressionismo alemão, como a obra inaugural O Gabinete do Dr. Galigari – se O Farol não tivesse tido um bom orçamento, caberia fácil no rol de obras dessa escola.
E se você estava desanimado com a falta de presença nacional nos longas indicados ao Oscar, o objeto dessa crítica preenche o papel, mesmo que indiretamente. A RT Features, produtora brasileira chefiada pelo carioca Rodrigo Teixeira é quem produz o filme. Em seu currículo, “apenas” A Vida Invisível (também premiado em Cannes) e Me Chame Pelo Seu Nome, só para citar alguns. Na produção do filme, se tornou amigo de Eggers, sendo um dos primeiros a ler o roteiro e dar todo o aval e confiança, é o que o próprio conta em entrevista no podcast Cinema na Varanda.
Em O Farol, o público se torna tão obsessivo quanto o protagonista na busca do que há por trás da fortaleza mística do título, cuja revelação culmina num final catártico e surreal. Os respiros são dados pelos conflitos do cotidiano dos dois trabalhadores. Então, temos a loucura e a contação de histórias de pescadores. O texto responde nossas mais singelas perguntas pela boca dos personagens. A ideia é de sermos o terceiro empregado contratado, conhecendo nossos similares. É uma construção de história cheia de significados e momentos que não se preocupa em explicá-los, mas sim em causar sensações. A dificuldade em saber o que é real ou não é constante, mas todas as pistas estão lá. Cabe ao público interpretar e discutir.