
Livia Queiroz
Em Setembro de 2000, os brasileiros saíram de suas casas e foram para os cinemas de suas cidades assistir ao que viria a ser um dos maiores sucessos do Cinema do país: O Auto da Compadecida. Baseado na obra de Ariano Suassuna, o filme foi um sucesso comercial e social, e alcançou um recorde histórico de 2.157.166 pessoas (o filme nacional mais assistido daquele ano), além de uma arrecadação de mais de onze milhões de reais em bilheteria. Tornou-se um ícone para os ‘canarinhos’ e estrangeiros latino-americanos sobre a cultura nordestina e referência cinematográfica nacional.
25 anos depois, o diretor Guel Arraes, desta vez junto de Flávia Lacerda, volta com o clássico em uma sequência inédita: O Auto da Compadecida 2, estrelada por Matheus Nachtergaele e Selton Mello. Lançado dez anos após a morte do criador do auto que o inspirou, o longa segue quebrando seus próprios recordes no Cinema brasileiro. A segunda obra que retrata o sertão nordestino, já ultrapassou os três milhões de espectadores e arrecadou mais de R$62 milhões em bilheteria, se tornando o segundo filme nacional mais visto nos cinemas em 2024, perdendo apenas para Ainda Estou Aqui, que também tem a participação de Selton.

A sequência da comédia dramática é completamente nostálgica, poética e divertida de assistir. O roteiro é repleto de referências e, até mesmo, falas iguais (como o bordão de Chicó: “não sei, só sei que foi assim”), além da composição dos personagens e a narrativa, que são bem semelhantes ao primeiro. Com isso, o público se surpreendeu com a volta das figuras principais e a maioria se abriu positivamente para ter novamente a experiência de vê-los nos cinemas. Entretanto, muitos se queixaram, alegando que ‘Ariano Suassuna sempre foi contra uma continuação’ ou que o segundo nunca poderia superar o primeiro e iria estragar o carinho que os espectadores têm pelos protagonistas.
Em uma entrevista para o Podpah, o ator Selton Mello rebateu indiretamente a esses comentários e disse que a intenção dessa nova produção não é superar e nem se comparar a obra-prima da década de 2000, mas sim, se permitir experimentar novamente desse cenário e divertir a audiência com os personagens tão amados do Cinema brasileiro. E conseguiram, mostrando por meio da emoção dos atores e figurantes dentro do set ao recriar o ambiente icônico e causando uma boa risada – com piadas um tanto quanto contemporâneas – para quem assiste. Não apenas isso, nas palavras do Selton: “o Suassuna sempre foi muito fã do nosso auto e gostava da ideia de uma continuação do filme e sempre afirmou isso para mim, […] já tinha uma benção”, ao contrário do que foi espalhado pela internet.

O Auto da Compadecida 2 cumpriu muito bem com seu papel quando se propôs a ressuscitar a emoção que os brasileiros sentiram pela cultura nordestina e lições de vida comandadas pela perspectiva de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello). É engraçado na medida certa, com uma transparência teatral ao transferir o humor dos personagens para as telas do cinema.
Para que isso acontecesse, somente a escalação de atores fenomenais como: Eduardo Sterblitch, que encena um radialista eletrizante tão bem que o personagem chega a ser enlouquecedor; Selton Mello; Matheus Nachtergaele; Fabiula Nascimento, que protagoniza de maneira eloquente a nova socialite vinda da capital; Virginia Cavendish; Enrique Diaz, o cabra-macho e cangaceiro dessa edição; Humberto Martins, como o coronel. Além do humor, os momentos de transbordar emoção foram reservados para Taís Araújo, que substitui Fernanda Montenegro e faz um trabalho espetacular como Nossa Senhora de Nazaré, não somente pela representação racial mas pelo olhar de compaixão que conseguiu transmitir durante todo seu tempo de tela. Ela ganhou uma música tema chamada Fiadeira de Maria Bethânia.
Apesar das características positivas que compõem o filme, existem alguns aspectos ruins dentro da obra e o processo de sua construção. Começando pela falha de roteiro, com a ausência de explicações sobre como o grupo do final do primeiro filme (Rosinha, Chicó e João Grilo) vivem seus próximos anos e como se separam, confundindo a audiência em alguns diálogos. Além disso, é infeliz a escolha das representações do Diabo e Jesus serem feitas pelo mesmo ator de João Grilo, isso deixou a dinâmica menos interessante para aquele que vê, já que, na mesma cena, são três personagens iguais em sua aparência.

Outro defeito são os efeitos especiais e filtros para o imaginário das mentiras e paisagens do sertão nordestino. É compreensível que faça uso desse tipo de tratamento nos vídeos para qualquer longa-metragem e, principalmente, nos feitos em estúdios, porém, é claro o exagero, ao ponto de parecerem imagens de Inteligência Artificial. Nesse sentido, é notável que alguns itens básicos da produção de uma obra cinematográfica não são desenvolvidos da maneira que agrade os olhos, pelo excesso de artificialidade na iluminação e animação, além da escolha das figuras de animação que também pareciam querer se mostrar reais mas não eram, coisa que não aconteceu no primeiro filme, parte pela falta de tecnologia avançada na época.
Mesmo assim, a filmagem é linda e emocionante pelos seus aspectos saudosistas, bem como se mostra uma poesia em conjunto com a Comédia teatral. Ao mesmo tempo, O Auto da Compadecida 2 encaminha uma reinvenção de si mesmo, trazendo uma nova trama e personagens que, mesmo diferentes em aparência e backstory, carregam os mesmos significados dos anteriores que já morreram. Também vale destacar os cenários, que apesar de serem da mesma cidade, são inovadores, com ambientes e detalhes construídos de acordo com os 25 anos passados até o segundo filme.
Por fim, o primeiro e segundo filme possuem enorme importância para a expansão da cultura brasileira e nordestina, que é um dos pilares fundamentais para a formação da essência artística nacional com os cordéis, as xilogravuras, festas tradicionais e o artesanato de madeira ou barro, por exemplo. Parte dessas práticas são mostradas nas obras, principalmente no segundo filme, quando a igreja vira uma atração turística e Chicó precisa ganhar um cascalho. Dessa vez, a Arte não é somente para caracterizar o local que se passa, todavia, tem como o propósito destacar os costumes da região. Dessa forma, aproveitando de seu sucesso, já imaginado, para traduzir tamanha riqueza ao mundo.