Capa do quarto álbum de estúdio do The 1975 (Foto: Reprodução)
Vitor Evangelista
Os meninos do The 1975 nunca foram tão cirurgicamente prepotentes. A banda de Manchester que fez seu nome rimando a sujeira das vielas em Sex e o ciúmes carcomido em Somebody Else, agora não busca mais solucionar os problemas do mundo, nem mesmo entendê-los. As 22 faixas de Notes on a Conditional Form ‘apenas’ documentam essa pós-modernidade em que vivemos. O disco soa como uma progressão natural e orgânica da arte de Matty Healy e cia, com mais anos de experiência e propriedade para endereçar os vícios de uma sociedade ególatra e despreocupada. Notes encontra espaço para estudos a respeito de Deus, da amizade e do aquecimento global. E todas essas arestas particulares formam um quadro que, em suma, pinta as qualidades e falhas dos artistas.
Notes on a Conditional Form, o quarto álbum da banda inglesa The 1975, é uma bagunça sem precedentes. O grupo de músicos, agora na casa dos 30 anos, deixa pra trás o glamour das drogas e do sexo na Terra da Rainha para cantar sobre caos e ruptura. Mesmo com o alvoroçado A Brief Inquiry Into Online Relationships (2018), antecessor deste recém-nascido, a banda ainda não havia mergulhado tão fundo nas problemáticas de armamento, questões ambientais e consequências dos vícios. O álbum anterior foi concebido antes e depois do período de reabilitação do vocalista Matty Healy, e as canções são relatos crus (mas refinados) das dores de um homem que teve de tudo mas nunca se satisfez.
‘Do you wanna leave at the same time?’ (Foto: Reprodução)
Egocêntrico por natureza, o frontman Matty Healy sempre usou do The 1975 como uma janela à refletir suas emoções. O CD autointitulado de 2013 apostava num rock carregado de influências de pop punk. Lá, canções como Chocolate e Robbers brincavam com o perigo e a violência. Matty, na época com 24 anos, não imaginava as consequências de seus vícios. Passando para 2016, I Like It When You Sleep…. assume tons mais serenos e uma acústica rimando remorso e esperança. O baque veio no disco de 2018, centrado na mundo pós-internet e sua nitidez quase doentia.
A Brief Inquiry já abria caminho para uma guinada da banda. Faixas instrumentais incrementaram o produto e, tematicamente, o CD era mais vago e contemplativo que o ‘esperado’. Os singles soavam semelhantes, mas essa é uma prerrogativa que os músicos carregam desde o início. As faixas de trabalho do The 1975 ocasionalmente caem em duas canaletas: as mais lentas e dengosas (como I Couldn’t Be More in Love), ao lado das elétricas e dançantes (Sincerity Is Scary). Os arranjos seguem padrões similares, as letras se referenciam, os temas convergem. Mas tudo mudou no novo álbum. A começar por sua concepção.
O disco foi chamado provisoriamente de Music for Cars, nome que eventualmente caiu. Com isso, a banda de Matty Healy batizou a ‘era’ com o antigo título e anunciou que o CD seria duplo. Isto é, reunindo canções descartadas de outros trabalhos, diversas experimentações sonoras, assim dando fecho à tetralogia de álbuns. Anunciado mais de dez meses atrás, Notes atrasou e teve 7 singles liberados antes do lançamento, que conta com vinte e duas faixas. Os 80 minutos de duração se dividem entre ótimas canções instrumentais, baladas pop chiclete e até um punk gritado à plenos pulmões. São ideias distintas, não tão coesas e que adicionam camadas ao produto final. Definitivamente não é o CD para conhecer e se apaixonar pelo grupo inglês. Na verdade, Notes on a Conditional Form se movimenta muito mais como uma conclusão e epílogo à longa jornada dos músicos. A preferência reflete uma tara do The 1975 para sair do retângulo e se esticar por espaços inabitados por eles.
‘She’s the most punk person I’ve ever met’, Matty declarou sobre Greta Thunberg (Foto: Reprodução)
O primeiro contato com o álbum causa estranhamento e talvez até aversão. A banda nomeia uma de suas instrumentais como The End (Music for Cars), um recolhimento de tropas, afirmando o encerramento dessa fase de sua arte. O punk inspirado em Marilyn Manson People sangra ouvidos e vem na sequência do discurso de Greta Thunberg na canção de abertura The 1975 (NOACF). O grupo sempre dá o pontapé nos álbuns com músicas autointituladas, porém é a primeira vez que os minutos iniciais figuram uma mensagem tão potente e direta: Thunberg, com sua irreverente oratória, nos convida a praticar desobediência civil. It’s time to rebel.
A religiosidade do vocalista de 31 anos sempre foi pauta das canções da banda. Se na dominante Antichrist Healy debatia com uma mulher sobre fé, e na poética If I Believe You ele criou uma linha direta com Deus, agora o cantor só sabe se apaixonar pela religião. Ao lado da exuberante Phoebe Bridgers, Matty quase louva Jesus Christ 2005 God Bless America, encontrando brechas para unir o amor proibido à discussão. I’m in love with a boy I know, but that’s a feeling I can never show, ele lamenta logo após declarar seu amor à Jesus. Muito mais aberto aos questionamentos da crença, o cantor aceita suas falhas, abraça suas rachaduras.
Além de Phoebe Bridgers, outras vozes compõem Notes on a Conditional Form. A canção mais formulaica do álbum, If You’re Too Shy (Let Me Know), é agraciada com os vocais angelicais de FKA Twigs. Outra adição é Tim Healy, pai de Matty, em Don’t Worry. O vocalista revela que a música que o pai compôs nos anos 90 foi a primeira que ele escutou. A banda repaginou a letra, adicionou Tim aos microfones e ressignificou a faixa. Novamente atestando o sentimento de conclusão que o álbum estampa em suas entrelinhas. O baterista e backing vocal George Daniel investiu pesado na estruturação de canções com sintetizadores e instrumentos carregados, como na tumultuada Shiny Collarbone, cantada pelo DJ jamaicano de reggae Cutty Ranks.
O The London Community Gospel Choir acompanhou o flow de Matty Healy na estupenda Nothing Revealed/Everything Denied (Foto: Reprodução)
Na contramão do comercial e de canções pueris, as composições dos membros Matty Healy, George Daniel, Adam Hann (guitarra) e Ross MacDonald (baixo) se afogam em convicção. Frail State of Mind parece material descartado do álbum anterior, visto o alto grau de fragilidade expresso. Outra que soa deslocada do todo é Roadkill, muito mais otimista e cômica que o usual, narrando as experiências da banda em turnê nos EUA. Enquanto em Guys, a última canção de Notes, Healy é vetor de uma canção de amor à amizade e à seus companheiros de banda. Para ele, essas relações não-românticas são as que mais nos moldam.
Invertendo uma fórmula de sucesso, o quarteto de Manchester não cansa de ser atual e relevante. Seus trabalhos anteriores exibiram o leque de emoções alcançadas e trabalhadas por eles. E agora, olhando em retrospecto, tudo que antecede Notes soa quase como um pedido de permissão a quem os acompanha. Cartas à mesa, jogadas realizadas, é hora de subverter o óbvio. As ramificações e atalhos que a banda toma para concluir suas concepções forçam um pouco a barra na escolha das canções. Por outro lado, mesmo que esse escarcéu de conteúdo, à primeira vista, pareça exagerado, retirar qualquer uma das 22 faixas resultaria num vácuo poético.
Tudo ali influencia na pintura, prega as pontas e respira as notas que o The 1975 compôs e deu vida. O quarto disco não dispõe de hits dançantes e confortáveis, muito pelo contrário, Notes on a Conditional Form oferece uma leitura de realidade consciente, estudada e fundamentada. Tudo vindo da mente artística da banda com nome de ano, que não cansa de fascinar, incomodar e, no caminho, se celebrar.
“I’m not playing with you, baby, I think you should give it a go”