Henrique Marinhos e Vitória Vulcano
Na era dos charts e streamings, a validação de carreiras artísticas facilmente recai em volumes numéricos. Talento, conceitos e estratégias de divulgação se organizam como meras formalidades que devem trabalhar por recordes incansáveis de reproduções, vendas e prêmios. Selena Gomez demorou para perceber essa realidade ingrata da indústria e seus impactos no corpo e espírito – o que a fez entender a relevância de patentear o fluxo da própria história. Em My Mind & Me, primeiro documentário da cantora e atriz, ela, enfim, dá voz aos episódios pessoais e midiáticos que acompanharam sua saúde mental nos últimos seis anos.
Inicialmente projetada para ser um diário da Revival Tour, a produção começa apresentando os bastidores desse espetáculo avassalador. Em 2016, Gomez não apenas tinha a missão de promover seu segundo álbum de estúdio, como estava amarrada à pressão de abandonar a imagem de garota da Disney, associada ao extenso currículo que construiu na empresa durante a infância e adolescência. Seus suspiros entre ensaios e trocas de figurino, momentos em que ela se sente incapaz de incorporar a mágica do palco em si mesma, dão conta de materializar a angústia de quem depende da avaliação dos aplausos para existir plenamente.
Muito antes de admitir os reflexos da rotina frenética em seu bem-estar, apesar de já possuir diagnóstico de lúpus, a artista pede inúmeras desculpas à equipe responsável pelos shows e, sobretudo, ao presidente de sua gravadora. Enquanto as apresentações ao vivo rodam o mundo, a exaustão física e emocional passa a cobrar satisfações e ultrapassar as portas dos camarins. Em Agosto daquele ano, o cancelamento da turnê e o afastamento midiático da cantora para cuidar da própria saúde estampavam as manchetes de jornais e os tópicos mais comentados das redes sociais. A partir do choque, a dimensão cinematográfica de My Mind & Me substitui os holofotes por imagens de Selena Gomez em 2019, no conforto de sua casa, pronta para romper o véu entre passado e presente.
A familiaridade do ambiente impulsiona os desabafos iniciais, que envolvem diagnósticos de depressão, ansiedade e ataques de pânico, além da descoberta do transtorno bipolar, enfrentados por Gomez. Intensificados por depoimentos de familiares e amigas, episódios que contornaram a imagem pública da artista durante o processo de internação hospitalar, como seu transplante emergencial de rim e o término definitivo com Justin Bieber, tomam o fôlego necessário sem interferir no simbolismo do longa, disposto a manter as expectativas externas do lado de fora. Aqui, a protagonista tem todos os traços e dilemas em plano central.
Sob as lentes do diretor Alek Keshishian (do sucesso Na Cama com Madonna), o documentário, então, opera duas vertentes em potência máxima: a crueza das emoções de Selena Gomez e as nivelações de seu fluxo de consciência. A primeira cresce em constância durante visitas nostálgicas a Grand Prairie, no Texas, onde reside tudo que participou do crescimento da cantora, desde a casa em que nasceu desenhando pelas paredes até o reencontro com antigos vizinhos e funcionários de uma das escolas em que estudou. Já a segunda oferece uma viagem aos pensamentos da artista, intercalando à história montagens em preto e branco que mesclam visuais e reflexões íntimas narradas por ela.
Universalmente visíveis, os passos de contemplação e introspecção que rodeiam o documentário são evocados especialmente entre as crises dolorosas causadas pelo lúpus e a espiral mental em que a cantora se aprofunda sempre que lida com a própria carreira. A mecanicidade no tratamento que as indústrias musical e midiática direcionam a seus construidores roubam a paixão da artista, que assume se sentir vista como produto constantemente. “Disse para Raquelle [sua melhor amiga] que às vezes tenho vontade de largar tudo para poder ser feliz e normal como as outras pessoas”, escancara Gomez, em certa altura.
Os holofotes são familiares à cantora desde os sete anos de idade. E hoje, consagrada, seu reconhecimento para além de suas obras é fruto de uma trajetória ligada não só as Artes, mas também à filantropia. O que recebíamos como silêncio em 2019 traduziu-se em uma das partes mais emocionantes de Minha Mente e Eu (título da produção no Brasil), que alterna entre o revelador e o relutante. A viagem de Gomez para o Quênia, em parceria com a WE Charity, trouxe outra versão de uma personalidade que nem todos conheciam, mais centrada na ação que na divulgação.
A partir de suas experiências como figura pública, que nem sempre foram fáceis, a imagem da artista é intimamente ligada a debates de saúde mental, autoaceitação e padrões estéticos. A expressão de vulnerabilidade nesses cenários é tão natural para Selena quanto os ganchos articulados no documentário, que segue com delicadeza distinta a ternura transbordante da protagonista, mesmo sem explorar seus anos como embaixadora da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e o impacto social provocado pelo lançamento de sua marca, Rare Beauty.
Gradativamente, o retorno de Gomez aos palcos após a jornada humanitária compõe um recorte sentimental e pessoal de sua apresentação de Lose You To Love Me, criticada no American Music Awards quatro edições atrás. Território conhecido pela cantora, indicada a Artista do Ano e vencedora do troféu de Melhor Artista Pop-Rock em 2016, a premiação, nas telas, carrega ares assustadores e promissores, equiparando a trajetória extensa e significativa da texana com o tamanho das angústias que encara ao se esforçar para atingir novos marcos.
Eventualmente, eu vou estar cansada de tudo isso, então eu provavelmente vou devotar a maior parte da minha vida à filantropia.
A junção de vídeos amadores, depoimentos, cenas de bastidores, apresentações musicais e relatos de pessoas próximas tece uma obra fluída e dinâmica, surpreendendo com momentos de comoção e ponderação. O contraste – proposital ou não – entre os momentos de glória e sofrimento são reforçados por simples transições do passado de Selena Gomez, entre sua imagem pública e, até então, privada.
Retratando do mundano ao artístico, My Mind & Me integra a onda atual de documentários sobre celebridades em destaque íntimo e máximo, garantindo uma indicação a Melhor Roteiro em Programa de Não Ficção no Emmy 2023. Na categoria, além de 100 Foot Wave e The U.S. and the Holocaust, o longa disputa com Moonage Daydream, odisseia focada em David Bowie, e Dear Mama, minissérie sobre Tupac Shakur e sua mãe.
Apesar da recente fama de esnobada pela Academia, a atriz tem longo histórico no Oscar da televisão desde sua participação em Os Feiticeiros de Waverly Place, programa nomeado duas vezes como Melhor Série Infantil, até as nomeações mais recentes em Melhor Série Culinária com Selena + Chef, da HBO Max. Ela concorre, ainda, a um troféu de Melhor Elenco por Only Murders in the Building, série em que é protagonista e produtora executiva.
Aos poucos, a mesma cantora que desafia todas as expectativas midiáticas e dos ‘selenators’, nome dado aos membros de seu fandom, se reconhece como sua maior adversária na busca por harmonia com a própria mente. Suas confidências nem sempre são acolhidas ou respeitadas por sua equipe ou seus amigos, no entanto, ela não se desvia da vontade de usar sua voz para transmitir uma mensagem de esperança. Afinal, não é necessariamente melancólico falar sobre saúde mental e é plenamente possível encontrar um caminho de equilíbrio – embora não seja simples.
Com a produção de Stephanie Meurer (Com Amor, Lizzo), Michelle An (Billie Eilish: The World’s a Little Blurry) e John Janick (Olivia Rodrigo: driving home 2 u), My Mind & Me se firma como a disposição poderosa de toda a sensibilidade à flor da pele que sustenta Selena Gomez. A artista, que tanto inspirou fãs a renovarem a bondade no mundo e desfazerem os nós da vaidade, agora reúne os próprios fantasmas para se reconciliar com sua identidade. Em frente ao espelho da vida, ela não quer perfeição nem apostar alto em suposições, somente se permitir sentir, na alma, as contradições de sua humanidade.
Continuarei lutando, mas estou feliz. Estou em paz. Estou brava. Estou triste. Estou segura. Estou cheia de dúvidas. Sou um trabalho em andamento. Sou o bastante. Sou Selena.