Para santificar Ethan Hunt, Missão: Impossível – O Acerto Final renega a singularidade da franquia

Aviso: O texto contém alguns spoilers

Cena do filme Missão: Impossível - O Acerto FinalNa imagem, Ethan Hunt está debaixo d’água em posição fetal enquanto é carregado pelas águas. A superfície está congelada e o personagem está quase encostado no gelo. A imagem é fotografada com o ângulo invertido: a superfície do mar está no canto esquerdo, como uma parede. Ethan Hunt ao centro, enquanto o lado direito é a água em tons escuros. Ele é um homem na faixa dos 60 anos, de pele clara e cabelos escuros. Está sem roupa e apenas usa uma sunga.
Oitavo filme da franquia foi exibido no Festival de Cannes 2025 (Foto: Paramount Pictures)

Davi Marcelgo

Depois de Christopher McQuarrie conceber o melhor filme da franquia, o cineasta trava a impossível missão do novo superar o antecessor. Tarefa que o faz aderir à rebeldia: não por incapacidade, mas por opção. Missão: Impossível – O Acerto Final conclui o embate entre Ethan Hunt (Tom Cruise) e a Entidade, renunciando as convenções da saga e investindo na crença que o público possui no Cinema. Na trama, o agente e sua equipe precisam reunir as forças remanescentes para impedir que a Entidade destrua o mundo ou obrigue as principais nações nucleares a fazê-lo. 

Enquanto o sétimo capítulo é solar, bem-humorado e com muita energia – a montagem de Eddie Hamilton nunca deixa o filme perder ritmo -, o novo filme é o oposto. Com cores frias, número inferior de cenas de ação e muito diálogo sobre geopolítica, o diretor e roteirista fabrica uma realidade comandada por uma Inteligência Artificial e, por isso, há uma injeção de desesperança que assola aquele mundo. Se a IA é quem domina o espaço material da humanidade, o longa também se adequa aos prognósticos da tecnologia. 

Cena do filme Missão: Impossível - O Acerto FinalNa imagem, os personagens Benji (à esquerda) e Ethan Hunt (à direita) estão com as testas encostadas, em sinal de afeto. Benji é um homem na faixa dos 50 anos, ruivo, de pele branca. Ele possui arranhões na bochecha e está com os olhos fechados, segurando o choro. Já Ethan Hunt é um homem na faixa dos 60 anos, de cabelos na altura do pescoço, cor escura e de pele clara. Ele também está com os olhos fechados. Ambos vestem roupa escura. Do cenário não dá para ver nada, apenas uma luz branca que está ao fundo.
Apesar do marketing insistir na ideia de “último capítulo”, nada foi confirmado oficialmente (Foto: Paramount Pictures)

As sequências de ação são pontuais e dramáticas, o show de ilusão ou uma perseguição irada de carros pela Europa são castrados e dão lugar a um senso de perigo, perda humana e silêncio. O protagonista está mais violento e a cadeia de acontecimentos que encerra o segundo ato é inibida de trilha sonora, da trivial montagem paralela ou de falas: Ethan Hunt está sozinho em um submarino abandonado. 

Somos guiados pelo rigor da decupagem de McQuarrie, que constrói tensão a partir da ausência de luz e do uso do cenário, seja na claustrofobia de espaços pequenos ou pelo visual, por meio de objetos em cena que estão desorganizados ou soterrados. Se O Acerto Final difere dos episódios da franquia, pelo menos o cineasta consegue tirar proveito da situação e renova os mecanismos para causar emoções no público, se assemelhando mais ao início comandado por Brian De Palma (diretor do original) do que ao próprio tipo de Cinema, megalomaníaco e maximalista. 

Cena do filme Missão: Impossível - O Acerto FinalNa imagem, Ethan Hunt em um traje preto de mergulho, se equilibra em uma plataforma dentro de um submarino abandonado. Há muita água e ferragens. As cores são sombrias, com tons de azul, preto e vermelho.
Esta é a segunda cena debaixo d’água de Ethan Hunt, a primeira foi em Missão: Impossível – Nação Secreta, em 2015 (Foto: Paramount Pictures)

Todo movimento dos agentes do IMF é calculado – pelo menos em grande parte da história -, eles possuem um plano e têm de segui-lo. Em distinção da narrativa criada por McQuarrie nos três filmes anteriores a este, há pouco espaço para improviso. Os espiões precisam agir como o arquétipo de máquina: há uma missão e ela precisa ser cumprida; respeitando algoritmos e sequências. Porém, se em O Acerto de Contas, a Entidade e Hunt eram semelhantes pelo caráter rebelde e intrusivo, ocasião em que a edição construía paralelos da imagem do agente com a narração sobre a IA, neste último capítulo, a diferença não poderia ser mais gritante. Ora um é humano, o outro uma máquina.  

O roteiro de McQuarrie prefere usar a humanidade do espião como bússola e, a partir disso, transformá-lo em um Messias. Quando a provação – e momento de virada na trama – de Ethan Hunt termina e ele, literalmente, é ressuscitado, o filme ganha, novamente, o aspecto enérgico comum. Para vencer o instrumento, é preciso “dar um jeito”, frase eternizada nas últimas aventuras da equipe. Porém, mais do que isso, é necessário ter fé. 

Texto Alt: Cena do filme Missão: Impossível - O Acerto FinalNa imagem, Ethan Hunt está pendurado em um avião de cor amarela. Ele está nas alturas, no horizonte é possível ver nuvens e vegetação. O personagem veste uma calça bege, camiseta branca, tênis e jaqueta marrom. Ele é um homem branco, na faixa dos 60 anos.
Em mais uma prova de imortalidade, Tom Cruise se pendura em avião para clímax do longa (Foto: Paramount Pictures)

Durante os percalços enfrentados e planejados, as personagens precisam contar com um sentimento que jamais um espião deve ter: confiança. As forças armadas precisam confiar em Hunt, pessoas em espiões desconhecidos que batem à porta e os agentes devem acreditar na sorte. Que o acaso vai salvá-los da morte. Mais do que nunca, na franquia, destino e crença, que andam juntos, são uma resposta ao cálculo frio da IA. Ter fé é um ato de rebeldia em um filme controlado. 

Missão Impossível – O Acerto Final inicia sua trama com a presidenta dos Estados Unidos clamando ao personagem principal para se entregar. Não há mais uma missão para ser aceita. E ao final, Ethan Hunt é santificado ao cair do céu enquanto o público testemunha Grace (Hayley Atwell) indagar “Onde está você, Ethan?”, como um fiel desamparado que ora a Deus. A oitava missão impossível faz com que suas personagens sejam como o espectador: crentes. A Ação só funciona se você acreditar que aquela ilusão imagética capturada por uma câmera e manipulada por muitos profissionais é real. É se permitir abdicar da física real e abraçar o Buster Keaton que há em todos nós – do inocente ao radical. 

 

 

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