Davi Marcelgo
Ao longo de quatro anos, Pablo Larraín dedicou seu trabalho de cineasta à Ditadura Militar chilena, com Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e No (2012). Desde 2016, o diretor agarrou outro gênero, parecido com o drama de época, a cinebiografia, com os filmes Jackie (2016) e Spencer (2021). Em 2024, sua visão sobre mulheres históricas do século XX adentra os palcos do Teatro Scala de Milão e registra os últimos dias de vida de Maria Callas (Angelina Jolie). Maria Callas foi selecionada para a 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e faz parte da seção Perspectiva Internacional.
Assim como no filme de Lady Di, Callas é uma protagonista em profunda tristeza e com seus símbolos sólidos desmoronando: a Música, a fama e a orientação. Larraín, que já tinha acertado anteriormente, prefere destacar um período da história de sua musa ao invés de apanhar uma vida toda em 120 minutos. Ao fazer isso, há mais espaço para aprofundar a protagonista e menos para entender a carreira: Maria é maior que La Callas.
Essa abordagem reflete a condição da personagem, que não se encontra mais no panteão de uma diva – a última apresentação dela foi em 1974. O mesmo não se pode dizer de Angelina Jolie, que com carões, voz e postura faz uma excelente atuação; às vezes hipnotizados, adormecemos a ideia de que conhecemos esse rosto de outros carnavais e de capas de revista: ela não é Jolie, é Callas. Em biografias, é muito fácil cair no caricato (quando não intencionado) ou na imitação, mas a ‘Malévola’ atribui humanidade ao seu trabalho.
A desconstrução de ícone para sujeito já começa no início com uma montagem que apresenta a grandiosidade da voz de Maria Callas e momentos de exaltação em sua vida, que são quebrados pela violenta realidade de não mais cantar em palcos, mas sim para a governanta da casa, que nem presta tanta atenção, pois se ocupa na cozinha. Pablo Larraín conduz a fragmentação de passado e presente através de cortes brutais que intercalam os tempos divergentes. Tal como Spencer, o cineasta também compõe uma mise-en-scène interessante; objetos e figurinos em cena dizem algo sobre a cantora, como as cenas em que está envolta de heróis e musas da mitologia grega, um reflexo de quem ela é. Os espaços soberbos, em tamanho e importância, deixam-na diminuta.
A desilusão e as realidades paralelas que Callas cria também são quebradas por alguém que a chama e a tira do delírio; em corais feitos para endeusar ela, na verdade, há vazio. É um retrato também muito melancólico, a soprano personifica seu remédio favorito em um jornalista que quer saber tudo a respeito dela: são poucos que estão dispostos a ouvir o passado e dores de uma estrela que já não brilha mais. Porém, o próprio Larraín é o Mandrax (Kodi Smit-McPhee), ele está interessado na história da grega, na saudades dos palcos, na relação com os funcionários e nos traumas da juventude. O que o diretor chileno propõe é uma provocação de choques entre muitas contradições, que deixam o espectador em uma montanha russa com destino para o abraço ao sujeito Maria.
Maria Callas se assemelha com o filme da princesa britânica a partir da composição de espaços e a história de queda, mas é melhor. Um dos melhores filmes da Mostra e do ano, com certeza um forte concorrente para o Oscar de 2025. É um longa que vai durar mais que um hype ou a curiosidade de conhecer uma persona, porque é um projeto que se mantém nos dramas e sentimentos de um personagem humano, não de uma carreira apoteótica.