Henrique Marinhos
Em competição na seção Mostra Brasil da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Lispectorante se destaca como um delírio surrealista, cheio de luzes esverdeadas e paralelos poéticos. A diretora Renata Pinheiro nos entrega um Recife que é mais do que um cenário – é um ser vivo, em estado de abandono e renascimento.
No centro da narrativa encontramos Glória, interpretada por Marcélia Cartaxo, cuja crise existencial e financeira a leva de volta à sua cidade natal. Recife, nesta fábula, se transforma em um campo de tensão entre passado e futuro, explorado por meio da casa de Clarice Lispector. A residência é uma fenda temporal que conecta Glória a visões fantásticas e assustadoras do que poderia ser seu destino.
A Fotografia de Wilssa Esser destaca um Recife, ao mesmo tempo, onírico e distópico. As luzes esverdeadas e os tons pós-industriais nos transportam a um futuro que lembra obras de cyberpunk, mas que também está profundamente enraizado na realidade brasileira. Esse jogo de luz e sombra é o que dá à obra sua atmosfera de inquietação – por vezes, nos sentimos em uma metáfora do Recife do presente, em outras, em uma dimensão paralela de um futuro incerto.
A casa de Lispector não é a única a ganhar protagonismo. O quarto onde Carmen Miranda costumava se hospedar no Hotel Central é mais um espaço repleto de memórias, narradas com humor pela atendente do espaço. Esse apego aos locais ressoa o conceito de Aquarius (2016), em que as casas são um porto seguro e, ao mesmo tempo, uma prisão em uma sociedade na qual o dinheiro dita os valores. A diretora faz questão de tornar essa relação entre pessoas e lugares uma das bases do filme, mostrando o dinheiro como o carcereiro ético que faz da liberdade uma mercadoria.
Marcélia Cartaxo e Pedro Wagner dão vida a personagens complexos (Glória e Guitar) e, ainda assim, acessíveis. As atuações passam longe de qualquer amadorismo, que acompanham o ritmo lento e ponderado do início da obra. A própria cidade é retratada como um lugar de resistência e contrastes, entre a decadência e a esperança.
Então, na reta final, a urgência toma conta. O ritmo muda, acelerando fora do ponto. Uma mudança que, embora traga energia ao desfecho, acaba sacrificando a calma necessária para digerir toda a profundidade que o longa construiu. Lispectorante pede uma certa serenidade para que o espectador entre em sintonia, e, por isso, esse final abrupto parece destoante – mas não menos impactante.
Renata Pinheiro e o corroteirista Sérgio Oliveira nos entregam incógnitas que não se encaixam em fórmulas. É uma exploração do surrealismo que mora em cada detalhe do cotidiano e uma reflexão sobre a fabulação humana; a capacidade de imaginar uma vida diferente mesmo quando todos os elementos dizem o contrário. Entre a beleza das luzes e a densidade das sombras, queremos saber o que há do outro lado dessa fenda.