Lispectorante é um espetáculo espectral

Cena do filme Lispectorante. Vista aérea de duas pessoas deitadas no fundo de um barco pequeno, com pintura verde central e madeira clara nas laterais. À esquerda está Glória, uma mulher de meia-idade, de cabelos curtos e ondulados, vestindo uma blusa escura e shorts vermelhos. À direita está Guitar, um homem branco com cabelo raspado dos lados e mais longo em cima, usando uma camisa aberta e calça dourada, exibindo uma expressão relaxada. Objetos como cordas e um salva-vidas branco estão espalhados ao redor. A água ao fundo e o verde vibrante da pintura evocam uma sensação de tranquilidade e liberdade.
Assim como a protagonista, a diretora do longa-metragem também é uma artista plástica (Foto: Amora Filmes)

Henrique Marinhos

Em competição na seção Mostra Brasil da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Lispectorante se destaca como um delírio surrealista, cheio de luzes esverdeadas e paralelos poéticos. A diretora Renata Pinheiro nos entrega um Recife que é mais do que um cenário – é um ser vivo, em estado de abandono e renascimento.

No centro da narrativa encontramos Glória, interpretada por Marcélia Cartaxo, cuja crise existencial e financeira a leva de volta à sua cidade natal. Recife, nesta fábula, se transforma em um campo de tensão entre passado e futuro, explorado por meio da casa de Clarice Lispector. A residência é uma fenda temporal que conecta Glória a visões fantásticas e assustadoras do que poderia ser seu destino.

Cena do filme Lispectorante. Glória, uma mulher de meia-idade com cabelos curtos e ondulados, está deitada de lado, apoiando o rosto contra uma superfície macia em um ambiente iluminado por uma luz quente e difusa. Seu cabelo está ligeiramente despenteado, e um sorriso discreto, quase melancólico, surge em seu rosto. A iluminação dourada realça a textura dos objetos e do cenário ao fundo, que parece ser um quarto, com detalhes de móveis e cortinas visíveis. O momento captura uma mistura de serenidade e vulnerabilidade, imersa em uma atmosfera introspectiva.
“A salvação é pelo risco” é a frase de Clarice Lispector que a diretora acredita resumir o filme (Foto: Amora Filmes)

A Fotografia de Wilssa Esser destaca um Recife, ao mesmo tempo, onírico e distópico. As luzes esverdeadas e os tons pós-industriais nos transportam a um futuro que lembra obras de cyberpunk, mas que também está profundamente enraizado na realidade brasileira. Esse jogo de luz e sombra é o que dá à obra sua atmosfera de inquietação – por vezes, nos sentimos em uma metáfora do Recife do presente, em outras, em uma dimensão paralela de um futuro incerto.

A casa de Lispector não é a única a ganhar protagonismo. O quarto onde Carmen Miranda costumava se hospedar no Hotel Central é mais um espaço repleto de memórias, narradas com humor pela atendente do espaço. Esse apego aos locais ressoa o conceito de Aquarius (2016), em que as casas são um porto seguro e, ao mesmo tempo, uma prisão em uma sociedade na qual o dinheiro dita os valores. A diretora faz questão de tornar essa relação entre pessoas e lugares uma das bases do filme, mostrando o dinheiro como o carcereiro ético que faz da liberdade uma mercadoria.

Cena do filme Lispectorante. Glória, uma mulher de meia-idade com cabelos curtos e ondulados, veste uma camisa colorida com estampas florais enquanto sorri de forma leve e confiante. Ela parece estar em um ambiente festivo, cercada por pessoas que aplaudem ao fundo, envoltas por uma iluminação quente e suave, composta por luzes amarelas e vermelhas que conferem um clima íntimo e acolhedor. A expressão no rosto de Glória sugere um momento de triunfo ou celebração, com um toque de satisfação pessoal, capturando um instante de leveza e alegria compartilhada.
Cartaxo já estava inserida no universo lispectoriano ao interpretar a protagonista de A Hora da Estrela (1986) [Foto: Amora Filmes]
Marcélia Cartaxo e Pedro Wagner dão vida a personagens complexos (Glória e Guitar) e, ainda assim, acessíveis. As atuações passam longe de qualquer amadorismo, que acompanham o ritmo lento e ponderado do início da obra. A própria cidade é retratada como um lugar de resistência e contrastes, entre a decadência e a esperança.

Então, na reta final, a urgência toma conta. O ritmo muda, acelerando fora do ponto. Uma mudança que, embora traga energia ao desfecho, acaba sacrificando a calma necessária para digerir toda a profundidade que o longa construiu. Lispectorante pede uma certa serenidade para que o espectador entre em sintonia, e, por isso, esse final abrupto parece destoante – mas não menos impactante.

Renata Pinheiro e o corroteirista Sérgio Oliveira nos entregam incógnitas que não se encaixam em fórmulas. É uma exploração do surrealismo que mora em cada detalhe do cotidiano e uma reflexão sobre a fabulação humana; a capacidade de imaginar uma vida diferente mesmo quando todos os elementos dizem o contrário. Entre a beleza das luzes e a densidade das sombras, queremos saber o que há do outro lado dessa fenda.

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