João Pedro Fávero e Nilo Vieira
Não é incomum ouvirmos expressões como “bom mesmo era antigamente, quando…”, mesmo que de pessoas jovens, sendo disparadas em debates sobre produtos culturais e midiáticos. Damien Chazelle, diretor de La La Land e atualmente com 32 anos, parece sofrer de uma sensação nostálgica do mais alto nível, sentindo saudades de uma era não vivenciada por ele.
Desde o início de sua carreira, Chazelle parece se sentir na obrigação de vestir uma capa e salvar o jazz. Não como estilo musical em si, mas o espírito da época em que os trompetes marcavam uma suposta inocência nas telas de cinema, notoriamente pelos musicais distribuídas pela Metro Goldwyn Mayer durante a década de 50, como mostrou logo no seu primeiro longa-metragem Guy and Madeline on a Park Bench (2009), uma espécie de preparação para La La Land. Já no (injustamente) aclamado Whiplash (2014), a direção pesada tentou retomar o virtuosismo quase exibicionista do gênero, com sucesso moderado: o longa se preocupou mais em acertos estéticos do que com a apresentação de um enredo com sustância.
Em sua mais nova empreitada, pode-se dizer que a intenção de Damien era mesclar as duas propostas anteriores. A homenagem à leveza da “era de ouro” de Hollywood se dá de maneira explícita, com refilmagens quadro a quadro de cenas famosas, enquanto o perfeccionismo do diretor imprime um tom ambicioso à obra, possível apenas pela tecnologia contemporânea. Com Emma Stone e Ryan Gosling no front, a escolha dos protagonistas também se revela bastante antenada com as tendências atuais.
Não é novidade que, com raras exceções, musicais se baseiam mais pelo deslumbre de cores e sons do que por enredos sólidos ou personagens complexos. Neste ponto, não há como não reconhecer que La La Land é um acerto: a fotografia e os figurinos são um primor visual e, de quebra, o filme não cai nos histrionismos vocais de um Les Misérables (2012). Em comparação ao seu antecessor, a direção se mostra um tanto mais leve, tanto por satirizar clichês (“Onde você verá tantos clichês de Hollywood em um mesmo local?”) como por reconhecer que, para uma possível “ressurreição” do jazz, deve-se atentar ao presente, e não ao passado.
Todavia, o encanto proporcionado por Damien Chazelle se revela volátil perante uma revisão ou mesmo um olhar mais crítico. O casal principal se mostra versátil quanto à música – Ryan aprendeu a tocar piano em apenas três meses -, mas suas atuações decepcionam. Como bem apontou o crítico Richard Brody, do The New Yorker, Emma Stone é responsável pelo momento mais vívido do filme – a cena onde La La Land, assumidamente revival, se dá o direito de depreciar o synthpop oitentista -, mas se resume a arregalar os olhos e fazer cara de paisagem em partes mais emocionais.
Já Gosling faria sucesso em outro indicado ao Oscar deste ano: a frieza inabalável e onipresente de seu Sebastian é mais convincente que a performance de Chasey Affleck em Manchester à Beira-Mar. De brinde, o cantor John Legend nos entrega um personagem secundário de naturalidade zero, até para fingir que está falando ao celular.
O enredo tenta inserir um aspecto mais realista para contrapor o típico tom fantasioso dos musicais, mas falha por se ater demais e nominalmente aos preceitos hollywoodianos – músicos, filmes, atrizes e atores são citados exaustivamente, verbalmente ou não, e em certo ponto o espectador com mais bagagem cinéfila pode se questionar se está perante uma colagem grandiloquente. Fora as referências assumidas, até mesmo partes pequenas parecem “emprestar” algo de obras passadas: veja abaixo e diga se o frenesi e o suor de Sebastian improvisando no piano não lembram o clássico final de The Cat Concerto (1946) (não à toa, vencedor do Oscar de melhor animação).
No sentido político, La La Land não oferece novidade alguma e ainda despeja um mansplaining totalmente desnecessário com Sebastian (aditivado por doses de ditadura da felicidade). Este adjetivo também serve para o final, onde enfim Chazelle masturba seu ego e, após uma reconstrução de flashbacks, repete a dose de Whiplash em um desfecho vazio – se muito, os quinze minutos finais servem como cenário para um easter egg envolvendo JK Simmons e reaproveitar a melhor canção da trilha, “City of Stars”.
Não é surpresa alguma toda a animação das instituições ao exaltar um filme que emula toda a época áurea e “pura” de Hollywood. Há seis anos atrás, a Academia premiou O Artista (2011), uma ode ao cinema mudo, na categoria mais desejada do Oscar e filmes igualmente premiados como Birdman (2014) e O Regresso (2015) se comportavam como festivais de referências. Inclusive, há de se ressaltar que esse apreço por trabalhos que remetem ao período de quando “arte comercial era boa” não se resume aos filmes, dadas as escolhas recentes questionáveis do Grammy para álbum do ano.
O paralelo mais próximo a La La Land se dá em Random Access Memories (2013), o mais recente disco do duo Daft Punk. Ambos se propõem a resgatar uma era que não estava mais em voga, com produções pesadas (só o processo de gravação de “Giorgio by Moroder” já basta como exemplo da megalomania do trabalho) e de fácil acesso ao grande público. No entanto, o teor messiânico dos dois trabalhos – o Daft Punk inicia o LP com uma canção chamada “Give Life Back to Music” – não só se mostra presunçoso, como também recai em um questionamento bem óbvio: se o passado é que era bom, por que simplesmente não se propõe uma revisão de trabalhos da época (inclusive os que passaram quase despercebidos)? Qual é o sentido de emular uma era deslocada de seu contexto?
Não espanta, então, que elogios como “o Daft Punk trouxe organicidade para a música eletrônica” ou “La La Land é um musical como não se faz há décadas” sejam comuns; é a nostalgia, muitas vezes platônica, falando mais alto. É a maneira da indústria cultural de cercear a insurgência das lutas políticas, colocando pastiches retrô como mais relevantes do que trabalhos que procuram retratar a atualidade como ela é. Claro, a arte não necessariamente precisa ser política para merecer elogios ou apresentar relevância, mas o mínimo que se pede é que ela seja coerente com o tempo em que foi produzida. Não parece ser o caso aqui: as 14 indicações que o musical recebeu são melhor um retrato da Academia do que do tenso contexto social, cada vez mais explícito, que vivemos em 2017.
La La Land é um bom entretenimento, e quiçá pode servir como porta de entrada para o mundo do jazz, assim como Random Access Memories para a música eletrônica/pop (oremos para que não acreditem que free jazz é realmente melódico e regrado do jeito satiricamente sugerido pelo filme). Por duas horas, é capaz de deslocar o público de seu cotidiano maçante e fornecer algum alívio cômico. Funciona como homenagem, mas não justifica tantos louros, ainda mais como se fosse a última novidade em linguagem cinematográfica. Ao fim da sessão, a realidade permanece a mesma, inóspita e muitas vezes indigesta – prova cabal de que a nostalgia só é doce na primeira mordida.