Nathalia Tetzner
Ao longo da história do mundo, impérios foram erguidos e derrubados, se alastraram pela imensidão e perderam territórios, derramaram sangue e no mesmo vermelho se afogaram. Desde os romanos, passando pelos mongóis até os britânicos, a humanidade parece naturalmente se inclinar sob a influência de uma força dominadora comum, apesar de passageira. Em 2007, o reality show Keeping Up with the Kardashians marcou a ascensão de um império liderado por mulheres que, pelo bem e pelo mal, moldaram a cultura de seu tempo e continuam à frente das áreas por enquanto não invadidas por bárbaros.
Por incrível que pareça, a analogia ao período monárquico é proporcional à realidade: o início da expansão Kardashian teve como estopim a desintegração da Rússia Imperial nos primeiros anos do século XX, quando os antepassados armênios de Robert Kardashian imigraram para os Estados Unidos. A família como conhecemos hoje é fruto da união de Robert, advogado conhecido pela defesa de O. J. Simpson, com a socialite Kris Jenner. Do casamento nasceram Rob, Kourtney, Kim e Khloé e, após o divórcio, o matrimônio com a ex-atleta olímpica Caitlyn Jenner resultaria em outras duas protagonistas, Kendall e Kylie.
Outro reinado que também chegou ao fim para dar espaço às mulheres mais controversas do entretenimento foi o de Paris Hilton, ícone da cultura de celebridades dos anos 2000. Embora parte do público considere a sextape de Kim Kardashian a razão do aumento da sua popularidade, a verdade é que, na época, a mídia pouco se importou. O salto à fama aconteceu graças ao esforço constante de ser fotografada ao lado da loira festeira de Hollywood, cuja imagem já demonstrava sinais de cansaço: The Simple Life, de Hilton e Nicole Richie, foi cancelado uma semana antes da estreia de Keeping Up with the Kardashians.
Fútil, imoral e de caráter duvidoso, o programa da emissora E! Entertainment Television teve temporadas marcadas pelas críticas dos especialistas da Televisão, porém, na mesma intensidade, não havia quem tirasse os olhos do cotidiano da família. Fato é que a qualidade nunca foi o objetivo do reality show e, se um dia as mulheres Kardashians foram estereotipadas, hoje são elas que ditam as normas do círculo social e feminino que regem. Os efeitos benéficos e maléficos desse poder são reações diretas do trabalho da momager (em tradução livre: mãe-agente) de maior sucesso da história, Kris Jenner.
A matriarca nunca escondeu as ambições, nem o faro aguçado para se tornar manchete dos portais de notícias e, por isso, é atribuída a ela a mudança de um tom meramente descontraído para um ambiente dramático. Produzido por Ryan Seacrest, os primeiros anos do seriado tiveram momentos que criaram frases canônicas, como a contestação de Kourtney ao assistir o desespero de Kim em perder os brincos no oceano: “Kim, there’s people that are dying” (“Kim, há pessoas morrendo”, em tradução literal). Nos anos seguintes, essa tensão vazia se aprofundou com temas universais, entre eles, insegurança e saúde mental.
Responsáveis pela espontaneidade de Keeping Up with the Kardashians quando crianças, Kendall e Kylie Jenner cresceram sob os holofotes, fato que novamente acarretou em uma modificação notável na estrutura do programa. Ao passo que foram crescendo, elas deixaram as memórias genuínas para trás e se afastaram da vulnerabilidade, consequência habitual de tamanha exposição. Em oposição às mulheres adultas da família, a ascensão precoce ao estrelato tirou dos espectadores os pontos mais divertidos de testemunhar para além do crescimento, as brigas e brincadeiras das irmãs.
Uma característica essencial de obras cinematográficas é a evolução das personagens e com o reality show não é diferente. Quem somente aponta os defeitos da produção com certeza não entende a importância do desenvolvimento para a narrativa de obras audiovisuais ou não examinou essa particularidade. Durante quase 14 anos de presença Kardashian nos televisores, as pessoas se conectaram com a vivência, em grande parte, distante das realidades socioeconômicas individuais. Exatamente como em um regime imperial, as pautas utópicas entraram para o debate público.
Tratando dessa atmosfera do imaginário perfeito e irreal, o corpo femino foi o alvo primordial da estética disseminada pelas protagonistas de Keeping Up with the Kardashians. A saída do padrão de magreza excessiva da primeira década deste século permitiu a entrada do voluptuoso, no entanto, apenas como mais uma imposição prejudicial. Os quadris largos de Kim na capa da revista Paper e a boca volumosa de Kylie no Snapchat são interferências cirúrgicas aparentes que causaram a popularização de certos procedimentos estéticos e, até mesmo, desafios nas redes sociais, perigosos à saúde.
Coadjuvante especial do Império Kardashian, Caitlyn Jenner permaneceu no programa até a sua separação de Kris em 2014. Acostumada a deixar o brilho para as demais mulheres da família, a sua afirmação como pessoa transgênera a trouxe de volta para documentar o seu processo de transição. Pela primeira vez, Caitlyn esteve à frente do discurso. Rob e Khloé também figuram na lista dos honestos com as suas dificuldades particulares, em especial, a distorção de imagem. Tal circunstância explica a falta do irmão em cena e a existência do seriado de índole questionável sobre perda de peso, Revenge Body with Khloé Kardashian.
Em meio às 20 temporadas, o reality show pode comemorar a longevidade e trama que parece ter saído direto de uma novela. Assim como os enredos brasileiros, as imperatrizes repetiram um ato inerente ao gênero: o casamento. No total, 3 noivos subiram ao altar acompanhados de alguma Kardashian. Consequentemente, a dependência emocional de Khloé com Lamar Odom, os 72 dias de união de Kim e Kris Humphries e a cerimônia inesquecível com Kanye West se caracterizaram como clímax. Todavia, foi o relacionamento conturbado de Kourtney e Scott Disick o mais duradouro; o carisma dele o fez um membro quase fixo e rendeu dois spin-offs.
O apogeu do Império de Keeping Up with the Kardashians aconteceu pelos anos de 2015 e 2017 quando não havia escape, a família estava em todos os lugares. Ao ligar a Televisão, ela não surgia somente no seu seriado, mas em todos os talk-shows. Nas redes sociais, as mulheres se tornaram um fenômeno: Kylie Jenner é a personalidade feminina de maior alcance no Instagram, com 370 milhões de seguidores. Por fim, no impresso, elas pararam de estampar as revistas de fofoca para serem as modelos de capas tradicionais da moda como a Vogue, Elle e Harper’s Bazaar.
É incoerente negar que todos esses feitos sejam a mistura perfeita de privilégio e talento. Sim, as Kardashians nasceram em berço de ouro, mas admita, sem aptidão elas não seriam capazes de construir um império de tamanha proporção – ainda que essa habilidade repouse na vaidade de suas ações. Do mesmo modo que Kim precisou de 4 tentativas até ser aprovada em um exame de advocacia, estar nas frentes das câmeras também pode não ser uma tarefa fácil para qualquer um. Obviamente, nada apagará a problemática em torno da riqueza abundante, das polêmicas e do poder de influência sobre o feminino.
Keeping Up with the Kardashians alavancou os membros e o próprio nome da família de maneira estrondosa e avassaladora. O programa de Televisão, inserido no contexto do extremo capitalismo estadunidense, ajudou a consolidar a marca e a vender livros de ficção e de selfies, música de natal e pirulitos, assim como as empresas de maquiagem e de cintas modeladoras. Episódio preocupante que denota a dimensão da notoriedade das protagonistas é o ataque sofrido por Kim na cidade de Paris em 2016, no qual os assaltantes elaboraram o crime após ela postar algumas de suas jóias nas redes sociais.
Atualmente longe de se desfazer, o Império Kardashian continua sendo uma peça fundamental para entender os passos da sociedade e do feminino. Há 1 ano, o reality show teve o seu término anunciado e o que seria o fim, acabou se tratando meramente de uma mudança de local. Agora exclusivamente nas plataformas de streaming, The Kardashians apresenta um olhar direcionado, em que elas estão no total controle da história como nunca antes. O ápice do reinado pode até ter passado, porém, elas continuam na boca do povo, sem dar ou receber sinais de cansaço.
O programa é bom de ruim, aquele entretenimento que injeta a dose necessária de futilidade, imoralidade e caráter duvidoso no cotidiano ordinário de quem assiste. Kris, Kourtney, Kim, Khloé, Kendall e Kylie são as imperatrizes do mundo contemporâneo e o aniversário de 15 anos do começo de seu reinado traz ao debate os benefícios e malefícios encarados pela sociedade desde então. No rol das séries que retratam uma época e a imortalizam na cultura popular, Keeping Up with the Kardashians cumpre o papel de registrar a construção e expansão de um Império.