Em Jurado Nº2, Clint Eastwood relembra clássico ao questionar o sistema judiciário norte-americano

Ao fundo estão os personagens de Cedric Yarbrough e Rebecca Koon. O primeiro está à direita com uma camiseta preta e o olhar vago e a segunda está à esquerda com uma camiseta rosa e uma blusa branca, ela está olhando para algo fora do plano. Mais a frente, em foco e no centro da imagem está o personagem de Nicholas Hoult, ele está com uma expressão preocupada, olhando para algo fora da câmera.
O filme chegou direto no streaming na maioria dos países (Foto: Warner Bros. Pictures)

Em 1957, Sidney Lumet lançou 12 Homens e uma Sentença (1957). A história é simples: um júri composto por 12 homens decide o futuro de uma pessoa. 11 votaram a favor da prisão e apenas um contra, e este que se opõe, tenta mudar a opinião dos demais. Clint Eastwood permeia o clássico, mas vai para um caminho diferente. Se na obra original, Henry Fonda reafirma e refresca o respeito aos processos legais no funcionamento do sistema, Nicholas Hoult é a incorrigível falha de uma das grandes instituições norte-americanas: a justiça.

Justin (Nicholas Hoult) é o clássico ‘homem perfeito’ estadunidense. Ele é branco, tem olhos azuis, mora em uma zona nobre, casado também com uma mulher branca e ambos estão tentando construir uma família. Ainda que tenha um passado com bebidas, ele aparenta ser uma pessoa boa. No entanto, ao ser convocado para ser jurado, Justin descobre que foi o culpado pelo caso em que está participando.

O Jurado Nº2 abre com o símbolo da justiça, com a balança pendendo para um lado e, logo em seguida, o primeiro plano mostra Allison (Zoey Deutch) com uma venda no rosto. É dessa forma que Eastwood brinca com as representações. Em um mundo ideal, a balança estaria em equilíbrio mostrando igualdade, e a justiça cega seria imparcialidade. Contudo, o veterano diretor de faroeste não se contenta em observar o mundo dessa forma. Apesar de ser um norte-americano e conservador até os dentes, ele não deixa de apontar as falhas nas instituições, normalmente relacionadas às contradições humanas, e dessa forma, adota um tom melancólico diante de tais rupturas.

O cenário é de uma ponte, com árvores no fundo. Na imagem estão Cedric Yarbrough e Nicholas Hoult. Cedric está com uma camisa azul clara, ele está de lado e olha fixamente para Nicholas Hoult. Nicholas Hoult usa uma blusa azul, ele está de lado e evita o olhar de Cedric.
“Justiça é a verdade em ação” (Foto: Warner Bros. Pictures)

O réu do caso é o namorado da vítima. O longa coloca duas pessoas totalmente opostas para fazer o espectador refletir sobre os conceitos de verdade e justiça. Se Justin é um homem bom que se envolveu em uma fatalidade, James Sythe (Gabriel Basso) é violento, faz parte de uma gangue, mas também é inocente. Nesse sentido, é estabelecido um conflito interno do personagem, que pesa as suas decisões na balança, entre se entregar ou não. Sem perceber, o público faz o mesmo. Assim como em As Pontes de Madison (1995), nós somos colocados em uma posição desconfortável em que assistimos algo moralmente errado, porém, questionamos nossas certezas ao depararmos com os personagens mais de perto, por vezes, fazendo até torcer a favor da impunidade – no caso de Jurado Nº2.

Em 12 Homens e uma Sentença, o jurado nº8 (Henry Fonda) se opõe ao veredicto, pois não acreditava que as provas fossem o suficiente para culpar o réu. Contudo, em Juror #2 (no original), o protagonista se vê impelido a defender a inocência do acusado por causa da culpa que sente e, assim como o personagem de Henry Fonda, ele busca mudar a opinião dos outros jurados a partir da descrença nas provas apresentadas. Entretanto, Justin irá falhar ao esbarrar nos interesses e na ideologia de cada personagem.

Aliás, esses são os dois pontos principais na tese de Clint Eastwood. Um julgamento não consegue ser imparcial, pois existem objetos externos a eles ou detalhes antes de começar que fazem toda a diferença. O diretor não mostra as falhas do sistema apenas pela figura de Nicholas Hoult – que funciona quase como um vírus dentro do jurí –, mas também por mais outras três: O ex-policial Harold (J. K. Simmons); a promotora Faith Killebrew (Toni Collette); o jurado Marcus King (Cedric Yarbrough).

Na imagem estão Toni Collette e Nicholas Hoult. Ambos estão sentados em um banco preto. Nicholas está a direita, ele veste uma camisa cinza, uma calça bege e uma roupa preta por cima. Ela usa um terno e um vestido todo cinza escuro. Ela olha fixamente para Nicholas Hoult que não retribui o olhar.
A Warner decidiu focar na campanha de Duna 2 (Foto: Warner Bros. Pictures)

Harold representa a primeira falha no processo: a escolha dos jurados. Ele é um tira aposentado e, por isso, não seria adequado estar no júri. Todavia, o defensor público não fez as perguntas apropriadas, interferindo em toda a decisão final. Já a promotora Faith Killebrew demonstra os interesses externos que prejudicam o andamento do julgamento. Inicialmente, sua preocupação não é com a verdade – ela já aceitou Sythe como o assassino e busca terminar o caso para alavancar a sua carreira. Por outro lado, o jurado Marcus King mostra como a ideologia afeta a sentença. Assim como a personagem de Toni Collette, ele não está interessado em achar o culpado, pois suas experiências pessoais o levaram a condená-lo, independente das provas. Ademais, existe uma testemunho de um homem que tem seus próprios motivos para mentir, o que influencia diretamente no veredicto.

Nesse contexto, três atuações se destacam: Nicholas Hoult, Toni Collette e Zoey Deutch. Hoult tem olhares muito preciosos, com olhos quase marejados e as bochechas vermelhas, de alguém que está sucumbindo por dentro, mas não pode demonstrar culpa frente ao júri e fraqueza frente a esposa. Enquanto Collette não muda a expressão, mas a partir de sua postura, inicialmente, relaxada e meio debochada para a mais contida, percebemos a mudança da personagem que, a priori, estava preocupada com a sua promoção, porém, a partir de certo momento, passa a ter compromisso com a verdade. Já Deutch cumpre uma função com Justin; ela é o motivo de todas as decisões dele. Por meio de ações simples como um sorriso, traz a graça necessária para a personagem e, conforme a trama corre, sua expressão facial dá lugar à preocupação quanto ao futuro do marido e filho.

A forma primorosa como Eastwood filma seus personagens é o que torna toda a história mais potente. Ele utiliza o digital de maneira limpa, mas com muitos contrastes. Os sombreamentos nos olhos de Nicholas Hoult aumentam a dramatização, assim como os close-ups que capturam as suas emoções. Parece que cada escolha de linguagem é muito precisa. A câmera em plongée deixando Toni Collette pequena sobre o símbolo da justiça reforça as suas dúvidas. Os planos e contraplanos trazem muito poder para a obra – que é quase toda filmada assim –  seja ao captar o rosto de Faith Killebrew e em seguida cortar para frase “Em Deus nós confiamos”, ou na última cena em que contrapõe os rostos dela e de Justin, deixando o final incerto.

Na cena estão Nicholas Hoult e Zoey Deutch. Ambos estão na cama. Ela está deitada com a cabeça e a mão no peito dele. Ele olha fixamente para o teto.
Clint Eastwood é famoso por seus filmes de gênero faroeste (Foto: Warner Bros. Pictures)

Ao colocar esses personagens em crise, Clint Eastwood irá nos questionar se verdade é igual a justiça. Será que seria justo prender Sythe por um crime que ele não cometeu, mesmo que ele seja uma pessoa horrível que abandonou sua namorada para voltar a pé em uma chuva? Será que seria correto prender Justin por matar Kendall Carter (Francesca Eastwood), ainda que tenha sido um acidente e ele tenha uma família que precisa dele? A obra não nos entrega a resposta para essas perguntas e nem mesmo a resolução final. Sobra apenas a questão: O que você faria?

Na maior parte do globo, o filme nem chegou aos cinemas, indo direto para os streamings, além da campanha quase nula para a temporada de premiações. É inexplicável o descaso da Warner com uma obra desse quilate, ainda mais feito por um dos maiores diretores de sua geração. No entanto, isso não diminui em nada o longa, que já se projeta como um dos melhores de 2024 e da filmografia de Clint Eastwood.

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