“E que a sorte esteja sempre a seu favor”
Júlia Caroline Fonte
Obras literárias costumam trazer diversos desafios quando transportadas para as telas, tanto para fazer a adaptação funcionar nesse meio, quanto para agradar o grande fandom que a acompanha. Há 10 anos, presenciamos Jogos Vorazes (The Hunger Games) causar um alvoroço e garantir o grande sucesso que viria com suas três sequências. Inspirado no livro de Suzanne Collins, o filme foi responsável por transformar o universo das adaptações literárias no Cinema, iniciando uma nova fase do gênero e se tornando um marco para ele e para o protagonismo feminino entre o público juvenil; bem como iniciando um novo respiro para as séries de distopias.
A história acontece em uma realidade distópica, na qual a capital Panem controla 12 distritos, que subordinados, são forçados a disponibilizar trabalho e matéria-prima; além de jovens para participar de um programa de televisão, os Jogos Vorazes, onde os participantes – conhecidos como tributos – são forçados a lutar até morte para que haja apenas um vitorioso. Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence), uma garota pobre do Distrito 12, se oferece como voluntária para proteger a irmã Primrose (Willow Shields), que foi escolhida para os Jogos. Assim, ela assume seu lugar e enfrenta diversos desafios para sobreviver ao lado de Peeta Mellark (Josh Hutcherson), um padeiro de seu distrito.
A narrativa explora diversas dificuldades da protagonista, que com seu gesto de coragem e amor com a irmã, vem a se tornar um símbolo para os distritos finalmente se rebelarem contra a opressão da capital. Sustentando uma narrativa de romance com Peeta (um amor encenado que depois se torna real), ambos conseguem sobreviver e desafiar o poder e soberania do Presidente Snow (Donald Sutherland), tornando-se uma ameaça que se intensifica através dos filmes seguintes. Porém, não sem sofrer diversas perdas no caminho para conquistar a liberdade do país.
Em suas sequências, vemos o caminho de Katniss se transformando e ficando cada vez mais perigoso, escancarando o arriscado jogo político no qual ela foi colocada. Os Jogos Vorazes foram apenas seu primeiro obstáculo. Assim como muitos tributos, ela vira uma estrela, e sua fama se torna um desafio delicado tanto para Snow quanto ao domínio da capital; com diversas e sutis provocações, ela desafia seus inimigos e instiga o povo a lutar nessa batalha.
Contudo, Katniss nunca começou nada por esse objetivo, seu único foco era proteger a irmã e garantir a sobrevivência daqueles que ama, além da própria, sem deixar de lutar pelo certo e por aquilo que acredita (mesmo que isso implique tomar atitudes drásticas), características que cativaram seu público e a tornaram tão humana. Seu broche se torna um símbolo de luta, no qual ela se transforma; Katniss agora é o tordo que move a revolução, e não pode mais fugir disso. Assim, o peso de seu papel passa a custar muito: seus amigos, seu distrito (destruído em um bombardeio), sua sanidade e, principalmente, sua irmã, que morreu ajudando a causa.
Porém, Katniss não se torna um símbolo apenas para Panem, a personagem foi responsável por balançar a indústria cinematográfica. Ela foi a primeira protagonista feminina em uma saga literária a trazer uma mulher em um papel social condizente e que esperamos há anos, mas nunca tivemos de modo marcante como ela: forte e corajosa, ao mesmo tempo que vulnerável e humana. Muito diferente foi o legado deixado por Bella Swan, que mesmo sendo um marco, ainda não apresentava a protagonista que esperávamos. Também Lúcia e Susana Pevensie, que em diversas situações do filme As Crônicas de Nárnia: o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa ficavam à sombra dos irmãos, só puderam lutar em uma batalha no segundo filme. Assim como Katniss, elas se consagraram como grandes protagonistas, porém, de modos muito diferentes quanto ao seu simbolismo nas adaptações. Katniss pôde fazer algo maior dentro do universo em que estava, e de fato estar à frente da narrativa, assim como Frodo Baggins e Harry Potter. Sem ser rebaixada por homens e dependente deles, e nem ser reduzida a estereótipos femininos ou papéis secundários – ocorrência comum em gêneros como distopias e ação; a personagem se confirma como uma grande inspiração para as garotas que a acompanharam desafiar o sistema e ser a heroína da própria história, de modo que torna Jogos Vorazes um marco para o público jovem.
No entanto, o impacto de seu papel contribuiu para criar novos estereótipos na década de 2010, momento de ascensão feminina na cultura pop. Os questionamentos quanto aos papéis e narrativas destinados às mulheres começaram a se intensificar e se tornar exigência do público, principalmente de mulheres cansadas da falta de representatividade. Katniss se torna uma personificação de uma mulher forte: fechada, sem traços femininos marcantes, forte fisicamente e que não demonstra sentimentos aos outros. Algo que foi importante para marcar o rompimento com a representação das mulheres no passado. Porém, nos esquecemos que mulheres fortes não se resumem apenas a essas características; a própria saga traz exemplos de mulheres que demonstram força de outras formas, como Mags (Lynn Cohen), Prim, Effie Trinket (Elizabeth Banks), Rue (Amandla Stenberg), Annie Cresta (Stef Dawson) e até mesmo a presidente Alma Coin (Julianne Moore).
Essa nova construção da personagem é muito bem trazida à tela, principalmente para o que Panem exige de Katniss. A capital é uma ótima representação da sociedade do espetáculo, que espera de suas marionetes – tributos – uma imagem desejável para o espectador, esses que o programa quer satisfazer a todo custo. Assim, nossa protagonista é forçada a viver um papel já esperado para que sobreviva, deve sorrir e ser simpática, e permanecer neutra diante de diversas situações sustentadas pela cegueira e intolerância da elite pelo seu povo. Ela protagoniza cenas icônicas desafiando a soberba da capital, e o melhor, sendo ela mesma, a Garota em Chamas que todos admiram e sentem sua força e calor emanar ao rodar um vestido e assumir sua verdadeira forma: um poderoso tordo.
Diante disso, a desigualdade social não deixa de aparecer como uma forte crítica em Jogos Vorazes, retratada pela relação entre a Capital e seus distritos. A miséria do distrito 12, ao qual somos apresentados desde o primeiro filme, faz um grande contraponto com os excessos dos luxos da capital. Essa população marginalizada só é útil para a elite quanto está ali para suas necessidades: o trabalho servil e entretenimento com suas mortes. O segundo filme, Jogos Vorazes: Em Chamas, é o que mais escancara essa problemática, quando Katniss e Peeta precisam adentrar os glamourosos palácios e conviver nesse cenário sabendo a situação do resto do país; assistindo a pessoas se empanturrar de comida e se afogando em futilidades, enquanto o povo passa fome. Isso tudo não deixa de ser reflexo direto da nossa sociedade e do pior que ela pode se tornar.
Essas críticas trazidas pela saga tiveram um papel social muito importante para o período de seu lançamento. As alegorias e metáforas presentes na história contribuíram para que o público, principalmente infanto-juvenil, tivessem contato com diversas questões problemáticas ali espelhadas e tomassem consciência de seu papel como cidadão. Como consequência, Jogos Vorazes inspirou diversas populações a se reerguerem e lutar para combater as autoridades, defendendo a democracia, como os protestos de Mianmar em 2021 e na Tailândia em 2014. Trazendo a esperança que as pessoas precisavam para mudar o mundo.
Em relação a aspectos técnicos, o filme dirigido por Gary Ross não decepciona. O roteiro muito bem feito escrito pelo diretor, junto de Billy Ray e da própria Suzanne Collins, garantiu o sucesso imediato do filme, junto é claro, de elenco de peso. Além disso, o marcante visual foi um elemento de extrema importância, dando vida a Panem e os distritos, resultado de um grande departamento de arte dirigido por John Collins, Robert Fechtman e Paul Richards, somado à excelente fotografia de Tom Stern. Porém, é possível notar um salto de qualidade entre os dois primeiros filmes e que se mantém nos dois últimos, principalmente quanto à imagem.
Jogos Vorazes se sustentou como uma importante obra audiovisual, e reforça isso com suas três continuações. Além de uma excelente adaptação, o filme também conseguiu se tornar um marco para o gênero distopia, garantindo um spin-off depois de 10 anos de seu início. E além de abrir espaço para outras grandes séries como Divergente e Maze Runner, ela foi responsável por reviver as sagas no cinema. O longa foi uma grande contribuição para modificar o papel feminino no audiovisual e estabelecer a importância da narrativa de heroínas, permitindo que jovens mulheres possam se espelhar e acreditar em seu potencial de fazer coisas grandiosas, e até mesmo começar uma revolução.