Há 70 anos, Hitchcock mostrava a beleza e a violência da vida alheia através de uma Janela Indiscreta

Cena do filme Janela Indiscreta. Tem duas pessoas na imagem. Na esquerda, aparecendo da cintura para cima está Lisa, uma mulher jovem branca, cabelo na altura dos ombros loiro e olhos azuis. Ela usa um vestido preto de manga curta e um colar de pérolas. Na direita, aparecendo só o busto, está Jefferies, um homem de meia idade branco, ele tem cabelo curto grisalho e olho azul. Ele está sentado em uma cadeira de rodas, veste um pijama de botão azul e está olhando por um binóculos. No fundo tem uma prateleira branca com livros e outros objetos desfocados.
O clássico suspense de Hitchcock completa 70 anos em 2024 (Fonte: Paramount Pictures)

Nathan Sampaio

Quem não gosta de uma boa fofoca? Daquelas que descobrimos podres, segredos e detalhes da vida alheia. Alguns poucos – talvez por vergonha de admitir – podem afirmar que não gostam desse ato, enquanto a maioria responderá, com empolgação, que o faz todos os dias. A realidade é que fofocar faz parte do nosso cotidiano, e segundo estudos, podemos passar até 52 minutos do nosso dia praticando a arte do mexerico. Em um ambiente urbanizado, o simples ato de se debruçar sobre a janela e olhar o prédio ao lado já é uma forma de futricar o dia a dia da vizinhança. Porém, o que você faria se, ao buscar se entreter com a rotina de outros, acidentalmente descobrisse que seu vizinho cometeu um crime? Há 70 anos, Alfred Hitchcock fazia essa mesma pergunta.

Janela Indiscreta, lançado em 1954, surge com a proposta de unir esse interesse pela vida alheia com um intenso suspense criminal. No longa, acompanhamos L.B. Jefferies (James Stewart), um fotógrafo renomado, que está com a perna quebrada e por isso é obrigado a passar todos os seus dias dentro de casa. Como forma de vencer a monotonia e o tédio do cotidiano, ele passa a observar a rotina de seus vizinhos. Até que, certo dia, o protagonista enxerga uma movimentação suspeita de um dos moradores do prédio ao lado: Lars Thorwald (Raymond Burr) aparenta ter assassinado sua esposa. O personagem central decide se unir com sua namorada – Lisa Carol Fremont (Grace Kelly) –, sua enfermeira – Stella (Thelma Ritter) – e o Tenente Thomas J. Doyle (Wendell Corey) para tentar solucionar o caso.

Cena do filme Janela Indiscreta. Tem uma pessoa na imagem. No centro aparecendo o torso, está Jefferies. Ele está sentado na cadeira de rodas, veste um pijama de botão azul e segura uma câmera fotográfica com uma lente teleobjetiva nas mãos. No fundo tem uma prateleira branca com objetos desfocados.
James Stewart trabalhou com Hitchcock em Festim diabólico (1948), O homem que sabia demais (1956) e Um corpo que cai (1958) [Fonte: Paramount Pictures]

A direção de Hitchcock coloca o espectador na mesma posição do protagonista, de forma que a trama surge e se desenrola por meio da perspectiva de Jefferies. Seguimos seus olhares e ouvimos suas conclusões sobre a vida dos seus vizinhos, bem como ficamos curiosos e titubeantes diante de comportamentos tão estranhos do suposto assassino. A experiência de observar e incapacidade de agir diante dos acontecimentos é o que torna o filme genial e angustiante ao mesmo tempo: o protagonista e o espectador estão do mesmo lado, e são passivos e dependentes da ação de outros personagens para avançar suas hipóteses do que ocorreu.

O longa-metragem – baseado no conto It Had To Be Murder, escrito por Cornell Woolrich em 1942 – é uma quebra, muito bem executada, da estrutura padrão de uma história de investigação e suspense. Ao invés do detetive conversar com várias pessoas e circular por locais de interesse, o protagonista é forçado a tirar suas conclusões apenas observando o comportamento do suspeito pela janela de casa. Essa linha narrativa escolhida apresenta limitações, como o espaço em que os atores observados aparecem e a falta de diálogos, – que foram muito bem contornados pela direção.

Cena do filme Janela Indiscreta. A imagem mostra três prédios de tijolos à vista. Na esquerda tem a lateral de um prédio de tijolos marrons, é possível ver uma escada de incêndio nele. No centro tem um prédio bege, nele tem dois apartamentos, um em cima e outro embaixo, o de cima está com as janelas e porta abertas. Na direita tem um prédio de três andares marrom, cada andar tem um apartamento e todos estão com as janelas abertas.
O cenário foi inteiramente construído: foram erguidos 31 apartamentos, sendo que 12 foram totalmente mobiliados (Fonte: Paramount Pictures)

O cenário do prédio foi construído com janelas grandes, que permitem que os investigadores tenham bastante visibilidade do espaço e do que os vizinhos – principalmente o suspeito –, estão fazendo dentro de seus apartamentos. O posicionamento dos atores nas casas e uso de linguagem corporal de cada um deles são magníficos. Sem esse tipo de trabalho, seria difícil para o espectador tirar suas próprias conclusões dos acontecimentos, tornando-o eternamente dependente de explicações dos protagonistas, o que raramente acontece. A trama é feita para que o público crie suas hipóteses e ouça os pontos de vista dos personagens, de forma que é possível confiar ou desacreditar totalmente do crime, que supostamente ocorreu.

Embora o mistério seja a parte mais envolvente do longa, há ainda subtramas em cada apartamento que são tão cativantes quanto a narrativa principal. Esses personagens não têm um nome, mas um apelido que está ligado ao seu drama particular ou a uma característica definidora. Srta. Torso (Georgine Darcy), por exemplo, é uma bailarina que vive cercada de homens, mas não parece amar nenhum deles;  já a Srta. Coração Solitário (Judith Evelyn) é uma mulher de meia-idade que sente falta de um companheiro para si. Essas mini-histórias fazem com que o ambiente pareça vivo e natural, e são tão bem contadas que podemos nos apegar a vizinhos que mal sabemos o som da sua voz.

Cena do filme Janela Indiscreta. A imagem mostra um prédio com duas janelas abertas, em cada uma tem uma pessoa, mas elas estão no mesmo apartamento. Na esquerda aparece Thorwald, um homem de meia idade branco, ele tem cabelo curto grisalho e olho azul. Ele veste uma camisa branca e uma calça azul. Ele olha as horas no relógio e segura seu óculos com a mão direita. Na direita tem Anna Thorwald, uma mulher de meia idade branca, ela tem cabelo nos ombros loiro, não é possível ver a cor dos seus olhos. Ela veste uma camisola branca e está deitada na cama. O prédio é de tijolo a vista marrom.
Hitchcock ficava em um dos apartamentos dirigindo os atores, que recebiam instruções através de fones de ouvido (Fonte: Paramount Pictures)

Outro aspecto marcante do longa, que o destaca na filmografia de Hitchcock, é o uso constante de som diegético, ou seja, efeitos e trilha sonora são ouvidos tanto pelo espectador quanto pelos personagens em cena. Esse recurso foi empregado para aumentar a imersão, pois dessa forma, podemos enxergar e ouvir o mesmo que Jefferies ouve. Ainda que a sonorização seja composta de ruídos urbanos e músicas instrumentais, é possível obter pistas sobre o caso, pois toda vez que Thorwald está em cena pode-se ouvir sirenes, buzinas e outros barulhos de alerta, indicando que algo está fora do comum naquele apartamento.

James Stewart faz uma interpretação que beira a paranoia e obsessão. Sua busca incessante pela verdade do que aconteceu com a vizinha é algo que pode até ser irritante para os espectadores, ainda mais que essa compulsão faz com que ele se afaste de Lisa, que mesmo assim permanece irredutível em buscá-lo. A relação entre os dois é o ponto mais baixo do filme, pois em muitos momentos é difícil simpatizar com o protagonista, que julga o modo de vida de sua namorada, dizendo que jamais combinaria com o seu modo aventureiro de viver.

Cena do filme Janela Indiscreta. Tem uma pessoa na imagem. No centro, da cintura para cima, aparece Lisa. Ela usa um vestido de manga cavada branco com estampa de flores em dourado. Ela segura uma bolsa marrom nas mãos e olha na direção da câmera. No fundo tem uma cama com malas.
O figurino de Grace Kelly foi feito pela estilista Edith Head, que, ao longo de sua vida, ganhou 8 estatuetas do Oscar por seu trabalho (Fonte: Paramount Pictures)

No entanto, o arco de Lisa é construído para rebater completamente os argumentos de Jefferies. Grace Kelly rouba a cena, e, até mesmo, o protagonismo em alguns momentos, ao interpretar uma personagem sagaz, inteligente e corajosa, isto porque, assim que se envolve no mistério, ela já cria suas próprias hipóteses e faz apontamentos que irão se provar certeiros. Além disso, a designer de moda tem um papel importantíssimo no final, sendo a responsável por reunir evidências essenciais para o caso. O fato dela atuar de forma direta na investigação e por colocar sua própria vida em risco em muitos momentos sem perder nenhum traço das suas características, é impecável e desafia tudo o que seu parceiro dizia.

Na época, o longa foi indicado em quatro categorias do Oscar: Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia e Melhor Mixagem de Som; mas infelizmente não venceu nenhuma delas. Embora não tenha sido indicada na maior premiação do cinema, Grace Kelly chegou a receber outros prêmios de Melhor Atriz, como o National Board of Review Awards e o New York Film Critics Circle Awards.

Cena do filme Janela Indiscreta. Tem duas pessoas na imagem. Na esquerda, sentado na cadeira de rodas está Jeffereis, ele veste um pijama de botão azul e segura um copo nas mãos. Ele está olhando para Lisa. Na direita está Lisa, aparecendo do joelho para cima. Ela veste uma camiseta branca de manga curta, uma saia branca com estampa de flores em preto, uma pulseira grossa de joias brilhantes e um colar de pérolas. Ela também segura um copo com as mãos. No fundo tem um conjunto de prédios desfocados.
A relação dos protagonistas foi baseado no relacionamento do fotógrafo Robert Capa e da atriz Ingrid Bergman (Fonte: Paramount Pictures)

Rare Window (no original) permanece atual e relevante até hoje, por ter fundado um subgênero do suspense: observar um crime pela janela e, a partir disso, começar uma investigação. A reutilização deste tropo narrativo muito se deve à atualidade da obra original, afinal, com o passar dos anos e a criação da internet e redes sociais, a população mundial se torna cada vez mais interessada pela vida alheia. Os filmes Paranóia (2007), A Mulher na Janela (2021) e Observador (2022) são alguns exemplos de obras similares, que bebem muito do suspense feito por Hitchcock.

Escrito, produzido e filmado há 70 anos, Janela Indiscreta ainda é um suspense muito charmoso, que consegue proporcionar uma experiência bem cativante e divertida. Depois de assistir esse clássico do cinema é impossível olhar pela janela de casa da mesma forma, afinal poderemos nos deparar com os dramas do cotidiano ou com segredos obscuros, que os nossos vizinhos buscam esconder ao máximo.

 

 

 

 

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