Nathan Sampaio
Quem não gosta de uma boa fofoca? Daquelas que descobrimos podres, segredos e detalhes da vida alheia. Alguns poucos – talvez por vergonha de admitir – podem afirmar que não gostam desse ato, enquanto a maioria responderá, com empolgação, que o faz todos os dias. A realidade é que fofocar faz parte do nosso cotidiano, e segundo estudos, podemos passar até 52 minutos do nosso dia praticando a arte do mexerico. Em um ambiente urbanizado, o simples ato de se debruçar sobre a janela e olhar o prédio ao lado já é uma forma de futricar o dia a dia da vizinhança. Porém, o que você faria se, ao buscar se entreter com a rotina de outros, acidentalmente descobrisse que seu vizinho cometeu um crime? Há 70 anos, Alfred Hitchcock fazia essa mesma pergunta.
Janela Indiscreta, lançado em 1954, surge com a proposta de unir esse interesse pela vida alheia com um intenso suspense criminal. No longa, acompanhamos L.B. Jefferies (James Stewart), um fotógrafo renomado, que está com a perna quebrada e por isso é obrigado a passar todos os seus dias dentro de casa. Como forma de vencer a monotonia e o tédio do cotidiano, ele passa a observar a rotina de seus vizinhos. Até que, certo dia, o protagonista enxerga uma movimentação suspeita de um dos moradores do prédio ao lado: Lars Thorwald (Raymond Burr) aparenta ter assassinado sua esposa. O personagem central decide se unir com sua namorada – Lisa Carol Fremont (Grace Kelly) –, sua enfermeira – Stella (Thelma Ritter) – e o Tenente Thomas J. Doyle (Wendell Corey) para tentar solucionar o caso.
A direção de Hitchcock coloca o espectador na mesma posição do protagonista, de forma que a trama surge e se desenrola por meio da perspectiva de Jefferies. Seguimos seus olhares e ouvimos suas conclusões sobre a vida dos seus vizinhos, bem como ficamos curiosos e titubeantes diante de comportamentos tão estranhos do suposto assassino. A experiência de observar e incapacidade de agir diante dos acontecimentos é o que torna o filme genial e angustiante ao mesmo tempo: o protagonista e o espectador estão do mesmo lado, e são passivos e dependentes da ação de outros personagens para avançar suas hipóteses do que ocorreu.
O longa-metragem – baseado no conto It Had To Be Murder, escrito por Cornell Woolrich em 1942 – é uma quebra, muito bem executada, da estrutura padrão de uma história de investigação e suspense. Ao invés do detetive conversar com várias pessoas e circular por locais de interesse, o protagonista é forçado a tirar suas conclusões apenas observando o comportamento do suspeito pela janela de casa. Essa linha narrativa escolhida apresenta limitações, como o espaço em que os atores observados aparecem e a falta de diálogos, – que foram muito bem contornados pela direção.
O cenário do prédio foi construído com janelas grandes, que permitem que os investigadores tenham bastante visibilidade do espaço e do que os vizinhos – principalmente o suspeito –, estão fazendo dentro de seus apartamentos. O posicionamento dos atores nas casas e uso de linguagem corporal de cada um deles são magníficos. Sem esse tipo de trabalho, seria difícil para o espectador tirar suas próprias conclusões dos acontecimentos, tornando-o eternamente dependente de explicações dos protagonistas, o que raramente acontece. A trama é feita para que o público crie suas hipóteses e ouça os pontos de vista dos personagens, de forma que é possível confiar ou desacreditar totalmente do crime, que supostamente ocorreu.
Embora o mistério seja a parte mais envolvente do longa, há ainda subtramas em cada apartamento que são tão cativantes quanto a narrativa principal. Esses personagens não têm um nome, mas um apelido que está ligado ao seu drama particular ou a uma característica definidora. Srta. Torso (Georgine Darcy), por exemplo, é uma bailarina que vive cercada de homens, mas não parece amar nenhum deles; já a Srta. Coração Solitário (Judith Evelyn) é uma mulher de meia-idade que sente falta de um companheiro para si. Essas mini-histórias fazem com que o ambiente pareça vivo e natural, e são tão bem contadas que podemos nos apegar a vizinhos que mal sabemos o som da sua voz.
Outro aspecto marcante do longa, que o destaca na filmografia de Hitchcock, é o uso constante de som diegético, ou seja, efeitos e trilha sonora são ouvidos tanto pelo espectador quanto pelos personagens em cena. Esse recurso foi empregado para aumentar a imersão, pois dessa forma, podemos enxergar e ouvir o mesmo que Jefferies ouve. Ainda que a sonorização seja composta de ruídos urbanos e músicas instrumentais, é possível obter pistas sobre o caso, pois toda vez que Thorwald está em cena pode-se ouvir sirenes, buzinas e outros barulhos de alerta, indicando que algo está fora do comum naquele apartamento.
James Stewart faz uma interpretação que beira a paranoia e obsessão. Sua busca incessante pela verdade do que aconteceu com a vizinha é algo que pode até ser irritante para os espectadores, ainda mais que essa compulsão faz com que ele se afaste de Lisa, que mesmo assim permanece irredutível em buscá-lo. A relação entre os dois é o ponto mais baixo do filme, pois em muitos momentos é difícil simpatizar com o protagonista, que julga o modo de vida de sua namorada, dizendo que jamais combinaria com o seu modo aventureiro de viver.
No entanto, o arco de Lisa é construído para rebater completamente os argumentos de Jefferies. Grace Kelly rouba a cena, e, até mesmo, o protagonismo em alguns momentos, ao interpretar uma personagem sagaz, inteligente e corajosa, isto porque, assim que se envolve no mistério, ela já cria suas próprias hipóteses e faz apontamentos que irão se provar certeiros. Além disso, a designer de moda tem um papel importantíssimo no final, sendo a responsável por reunir evidências essenciais para o caso. O fato dela atuar de forma direta na investigação e por colocar sua própria vida em risco em muitos momentos sem perder nenhum traço das suas características, é impecável e desafia tudo o que seu parceiro dizia.
Na época, o longa foi indicado em quatro categorias do Oscar: Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia e Melhor Mixagem de Som; mas infelizmente não venceu nenhuma delas. Embora não tenha sido indicada na maior premiação do cinema, Grace Kelly chegou a receber outros prêmios de Melhor Atriz, como o National Board of Review Awards e o New York Film Critics Circle Awards.
Rare Window (no original) permanece atual e relevante até hoje, por ter fundado um subgênero do suspense: observar um crime pela janela e, a partir disso, começar uma investigação. A reutilização deste tropo narrativo muito se deve à atualidade da obra original, afinal, com o passar dos anos e a criação da internet e redes sociais, a população mundial se torna cada vez mais interessada pela vida alheia. Os filmes Paranóia (2007), A Mulher na Janela (2021) e Observador (2022) são alguns exemplos de obras similares, que bebem muito do suspense feito por Hitchcock.
Escrito, produzido e filmado há 70 anos, Janela Indiscreta ainda é um suspense muito charmoso, que consegue proporcionar uma experiência bem cativante e divertida. Depois de assistir esse clássico do cinema é impossível olhar pela janela de casa da mesma forma, afinal poderemos nos deparar com os dramas do cotidiano ou com segredos obscuros, que os nossos vizinhos buscam esconder ao máximo.