Jamily Rigonatto
Estabelecida na cena do alternativo nacional, a Carne Doce costuma tratar de temas polêmicos, com melodias dominadas pelo estilo indie rock e certos toques de psicodelia cantados nos vocais fortes e reconhecíveis da líder e vocalista Salma Jô. Mas no seu mais recente trabalho de estúdio, a banda, que divide sua origem goiana com sucessos como Boogarins, mostra uma outra face sem perder a autenticidade. Dedicando seu quarto álbum exatamente a essa origem, Interior é uma obra sobre conexão e raízes.
Carregando leveza e intimidade, o projeto foi lançado no dia 18 de setembro e se destaca entre outros pela suavidade. Depois de todo o protesto, crítica e feminismo de Princesa, e da sensualidade em tons escuros de Tônus, Interior resgata o cenário interiorano em cores quentes. São 12 faixas que de um jeito muito iluminado mostram não só a evolução instrumental e vocal da banda, como também marcam uma nova fase dela.
A capa estampada por um pequi entrega a intenção de trazer proximidade com a terra. A fruta típica de Goiás é amplamente utilizada na culinária da região e chama atenção pelo sabor intenso e por sua aparência defensiva, sendo praticamente um símbolo cultural. As cores alaranjadas e a simplicidade da imagem realmente cumprem bem a ideia de se relacionar com uma atmosfera mais caseira e rural.
Com a primeira faixa não é diferente. Temporal narra o apocalíptico egocentrismo humano em notas doces, enquanto o resultado da reedição de takes do documentário Paulistas cria um clipe que passeia por uma festa típica de Catalão. O vídeo reafirma a necessidade humana de protagonismo ao focar o enquadramento nas pessoas.
É impossível não relacionar a música ao primeiro álbum da banda, Carne Doce, de 2014. O disco já trazia referências ao rural e as transformações causadas pela ação urbana civilizatória, e a evolução na maneira de introduzir isso fica bem clara. Enquanto na primeira os vocais eram gritados e a letra bem mais rasgada, agora a temática se insere de uma forma bem mais intrínseca e metafórica.
O interior se mostra mais vezes ao decorrer das músicas. Mas em um sentido menos geográfico da palavra, agora as composições expressam sentimentos e até abordam cenários otimistas e esperançosos, o que combina bem com o momento caótico em que o projeto foi produzido e nos dá a sensação de estar vendo um pouco pelos olhos da Salma. Essa pessoalidade discreta é o tipo de sutileza que coloca Interior em uma posição diferente dos outros álbuns da banda.
Seja falando de amor ou de ódio, as mixagens e os instrumentais trazem um tom de brincadeira às canções, e essa capacidade de fluir entre outros ritmos também é um diferencial. Em muitos momentos as músicas se mostram contagiantes e dançantes, com traços de MPB em Passarin, samba em Hater, reggae em Cérebro Bobo e do pop em Garoto, o que deixa a estética do álbum ainda mais leve e colorida.
Relações com a internet e com as redes sociais também não ficam de fora da produção, e as faixas Hater e Fake vêm para retratar o clima hipócrita das redes. Uma falando sobre a contradição de ser um hater e do fenômeno de incitar ódio em ambiente virtual, a outra sobre a falsa perfeição representada por muitos nesse lugar em que nunca errar, falhar ou expor fragilidade é a regra.
Apesar dos pontos positivos, essas músicas acabam deslocadas da temática principal do álbum. As canções só se encaixam quando pensamos no conceito de interior enquanto subjetividade, já que nos últimos tempos as relações da banda com a internet não foram das melhores. Por se envolverem em situações polêmicas e terem passado pelo tribunal da cultura do cancelamento, inclusive levando junto artistas como Letícia Letrux, fica difícil não imaginar que as músicas são um jeitinho delicado, mas nada despretensioso de se posicionar sobre isso.
Interior não pode ser descrito com palavras como ‘ousado’ ou ‘surpreendente’. O projeto tem boas amarrações e consegue cumprir sua proposta de adocicar e iluminar a banda, e como de costume, muito do que eles querem transmitir fica nos detalhes. As mudanças e evolução não são bruscas, mas são visíveis e mantém a Carne Doce em uma posição de equilíbrio.
Escutar as faixas do álbum é uma experiência que traz tranquilidade. O minimalista e intimista de ser do interior são garantidos e isso é suficiente. Nos resta saber se os próximos passos do grupo também vêm acompanhados do doce sabor da terra.