Gabriel Leite
IDLES, para alguns, pode parecer intragável de início. Eu não julgo, foi assim comigo e demorou uns bons meses até eu realmente me interessar em escutar. Começou como uma banda que eu pulava as músicas quando tocava na playlist aleatória, depois evoluiu para um guilty pleasure (“prazer com culpa”, em tradução livre) e agora eu estou aqui escrevendo sobre ela. Sua sonoridade é algo que ou te pega de primeira ou insiste até você gostar. Não vence pelo cansaço, mas sim pela força arrebatadora de uma roda punk saindo dos fones direto para seu ouvido até você prestar atenção.
Então meu objetivo aqui hoje é, não só escrever uma simples crítica, review, análise ou seja lá o que for de CRAWLER, o 4º álbum de estúdio, como também apresentar brevemente a banda e seus trabalhos para que, de alguma maneira, possa lhe trazer um maior aproveitamento quando você for escutar seu lançamento mais recente (e quem sabe fazer você dar um ponta pé inicial para se tornar fã da banda).
Criada em 2009 na cidade de Bristol, Inglaterra, IDLES gravava esporadicamente singles de maneira despretensiosa. A justificativa, segundo o vocalista, foi a de que “não sabiam o que estavam fazendo”. Foi apenas em 2017 que decidiram, por fim, lançar seu álbum de estreia, Brutalism. Muito bem aceito pela crítica, o disco colocou a banda no mapa e, não só isso, atraiu olhos (e ouvidos) para um grupo que trazia com força para o topo das paradas o pós-punk, movimento que, apesar de ter ficado aparentemente adormecido por alguns anos, vem retomando cada vez mais seu espaço na europa e leste europeu, com bandas mais novas como Fontaines D.C. e Human Tetris. Mas isso fica para outro texto.
Com uma nova roupagem e discutindo assuntos mais atuais e pouco debatidos dentro desse gênero musical como aceitação, questionamentos sobre os privilégios da masculinidade e suas toxicidades, vulnerabilidade, crítica ao capitalismo, luto e diversos outros temas, IDLES trouxe novos ares ao punk – apesar de fugirem de títulos que definam sua sonoridade. Embora raro, esses “novos ares” com letras voltadas para um lado mais artístico e poético já havia sido discutido por bandas como Wire e The Velvet Underground, ambas explorando novas extensões do punk, muitas vezes conhecido como art punk ou avant punk. Tudo isso somado a crueza agressiva do timbre do vocalista Joe Talbot e do som áspero e pesado do restante da banda composta por Mark Bowen (guitarra), Lee Kiernan (guitarra), Adam Devonshire (baixo) e Jon Beavis (bateria) moldaram o grupo no que ele é hoje.
Depois de Brutalism e seguros de sua identidade sonora, lançaram em agosto de 2018 Joy as an Act of Resistance, uma evolução natural do primeiro álbum pela qual todo grupo passa, porém mais complexo, refinado, e mais consciente de si. A soma disso tudo, atualmente, faz do álbum o coração da banda dentro de sua discografia. Com letras certeiras, críticas e reflexivas, sobre os temas citados no parágrafo anterior, Joy as an Act of Resistance os levou a um outro patamar, os ajudando a solidificar seu caminho dentro do cenário britânico, indo do underground ao mainstream.
Após o hiato de um ano e uma pandemia que virou o mundo de cabeça para baixo, em 2020, chegaram com Ultra Mono, um álbum selvagem, raivoso, potente, harmoniosamente caótico e mais cru do que nunca. Em uma entrevista à NME, o vocalista Joe Talbot diz, em tradução livre, que “Ultra Mono é uma caricatura de quem éramos, e escrevemos essa caricatura intencionalmente para matá-la”. Na mesma entrevista, o guitarrista Mark Bowen diz que “IDLES sempre foi uma banda para subverter expectativas”, dito isso, nadaram contra a corrente e, ao em vez de seguir na mesma linha de seus dois primeiros álbuns, optaram por abraçar a ironia e desconstruir a maneira como a banda era vista e usar isso a favor deles.
Como todas as pessoas, Joe passou por altos e baixos. No processo de gravação de Brutalism, o vocalista perdeu a mãe e, no período entre os dois primeiros álbuns, sofreu a perda de sua filha recém-nascida (a qual ele dedica uma de suas músicas mais bonitas, June). Problemas e traumas evoluíram para o alcoolismo, e tudo isso refletiu na escrita de Talbot que transparece, em Ultra Mono, toda raiva e angústia, mas também uma vontade de superar tais problemas, mas ainda assim de maneira menos profunda do que é visto em CRAWLER. Por possuir esse perfil, o álbum talvez seja a base mais importante para seu 4° disco, uma vez que nele, Talbot explora de maneira mais profunda seus traumas numa espécie de D.R. consigo mesmo.
Após recaídas, Talbot encontrou apoio nas sessões de terapia o que culminou em novas perspectivas não só para sua vida pessoal como para sua vida musical. “Eu estava em um lugar muito, muito ruim, e não tinha a ver com a banda ou as entrevistas”, ele diz. “Eu não estou mais naquele lugar. Não estou na defensiva. Não estou bravo”. Sendo assim, a partir de suas reflexões e a vontade da banda como um todo de deixar o ego de lado e começar a seguir um novo caminho evitando a repetição, eles partem para CRAWLER.
Apesar de ser uma crítica sobre música, é interessante comentar sobre a capa, que muitas das vezes passam despercebidas. Feita em parceria com o fotógrafo Tom Ham, vemos Joe trajado como um astronauta, em gravidade zero. Uma capa extremamente simbólica, uma vez que o teor das letras contidas no álbum vem de um lado muito pessoal do vocalista. Ele trafega só, na vastidão de seus traumas e suas experiências, sejam elas boas ou ruins, e mergulha de cabeça em seu próprio drama psicológico. Em Ultra Mono, por exemplo, uma grande bola rosa acerta em cheio a cara de um homem. Em Joy as an Act of Resistance, um bando de homens brancos, de meia idade e provavelmente de classe média, apartam uma briga, e, em Brutalism, uma escultura feita por Talbot e seu pai com a foto da mãe do vocalista reflete a importância do significado que a banda dá às capas de seus álbuns. Em CRAWLER, não poderia ser diferente.
Em MTT 420 RR, a faixa que abre o álbum começa bem demarcada sem muitas distrações, dando espaço não só à letra como a voz de Talbot que, num primeiro momento, aparenta contida e centrada ao invés de explosiva. Mas não se engane, a escolha é perfeita para mostrar a que o álbum veio, equilibrando muito bem o que ele sabe fazer de melhor. A música em si é sobre um acidente em que ele se envolveu, onde o modelo da motocicleta da pessoa acidentada era uma MTT 420 RR, o que fez com que ele refletisse sobre a vida e como ele teve sorte de estar aqui até hoje após anos de vício.
Joe sempre cantou mais sobre o que estava ao seu redor e dos lugares que cresceu e sobre como ele enxergava o mundo, mas aqui, mais do que em qualquer outro álbum, o vocalista olha fundo para dentro de si mesmo e, por sorte, ele se encara de peito aberto – como se deixasse mostrar-se vulnerável –, cantando tal qual um mantra “você está preparado para a tempestade?”, fazendo um convite para o que está por vir nas faixas seguintes.
Seguimos então para The Wheel. Aqui Talbot vê na simbologia da roda o vício alcoólico de sua mãe como se visse a si mesmo e seus próprios demônios, num ciclo que se mantém girando (“Eu fiquei de joelhos/E implorei à minha mãe/Com uma garrafa na mão”). O baixo de Adam Devonshire se destaca mais do que na primeira faixa com a batida grave e ritmada como se anunciasse um toque de alerta sombrio. Joe relata que a mãe sempre foi uma pessoa incrível e amorosa, entretanto sempre existiu esse lado mais lúgubre do vício.
Em When The Lights Come On, fica sonoramente nítido as referências dos acordes do pós-punk dos anos 70 e 80, como um Joy Division ou um Bauhaus. É sobre quando as luzes da festa se acendem e é chegada a hora de ir embora, mesmo você querendo ficar. A frase “parece que estou voltando para casa”, numa crescente acompanhada pela guitarra de Lee Kiernan e Mark Bowen, traz uma estranheza desconcertante que funciona muito bem com a temática da música.
A próxima faixa, Car Crash traz a “fórmula sonora” da banda do começo ao fim. É sobre acordar de ressaca e perceber o peso de certas escolhas da noite passada ecoando na manhã seguinte da maneira mais abrupta possível. É áspera, ruidosa e sua batida distorcida remete à banda de hip hop experimental, Death Grips. “Smash, eu sou uma batida de carro”.
The New Sensation tem sua base no surf rock anos 60 e é uma das faixas que com certeza te fará dançar, pular e cantar junto em um show. É a música para exorcizar o cansaço nos fazendo ter vontade de extravasar. A faixa seguinte, The Stockholm Syndrome, é um dos pontos altos do álbum e, de longe, possui umas das letras mais bem trabalhadas pelo IDLES. É poética, social e crítica, por se tratar da hipocrisia de julgar outras pessoas pelos seus vícios, mesmo tendo nossos próprios. Aqui, mais uma vez, sentimos a forte influência de Joy Division, da canção Shadowplay nos riffs, e é o casamento perfeito entre a identidade sonora que construíram até aqui com a identidade que estão tentando buscar. Por conta disso, acaba sendo uma das (se não a mais) equilibrada de todas dentro do álbum.
Chegamos então ao primeiro single lançado, The Beachland Ballroom. Se The Stockholm Syndrome foi um mix sonoro da banda, a faixa da vez mergulha de cabeça em algo que ainda não tinham feito. Com a adição de um teclado sintetizador e a cantoria calma, porém carregada, de Joe Talbot, a música se torna uma balada dançante com influências de folk e soul. Sua temática é sobre se sentir perdido, mas estar não apenas encontrando um caminho para se encontrar, como também mostrar uma certa fragilidade por dentro da casca grossa do punk. Tudo isso deixa evidente que assumir sua vulnerabilidade, cantar de peito aberto e expor suas feridas é forte e pode tornar-se sua arma mais potente. Ela sintetiza o objetivo da proposta do novo álbum e abre caminho para novos horizontes.
The Beachland Ballroom funciona não só como divisora de águas para a banda como um todo, mas também para o álbum. Depois da faixa, somos apresentados à segunda metade do disco que se inicia com Crawl! (Rasteje!). Como dito anteriormente, o álbum todo é sobre desafios, traumas, superação e autoconhecimento, e aqui o peso emocional de perceber que você tem problemas que precisa seguir em frente é avassalador. É como Joe Talbot se vê com seus vícios, tendo consciência de que uma parte sua é péssima (não necessariamente má) e outra parte é muito boa, e que as duas juntas formam o seu ser por completo. É um relato de um sobrevivente que está tentando vencer seus próprios desafios. Mesmo que você não consiga levantar ou andar, rasteje!
À partir disso, somos apresentados a faixas como a experimental Meds, que discorre sobre uso de medicamentos, espiritualidade e síndrome do impostor enquanto introduz um saxofone um tanto quanto… Instável. A dupla Kelechi e Progress, onde a primeira, completamente instrumental, leva o nome de um amigo do vocalista que se suicidou, é sucinta (com apenas 30 segundos) e é sobre a ausência das palavras durante o luto. Também serve como introdução a faixa seguinte, que, por sua vez, é uma conversa sincera na frente do espelho de Joe Talbot, cantando também como um mantra “Tão pesado quanto meus ossos eram/eu não quero me sentir chapado”. É sobre perceber a consequência de seus atos autodestrutivos causados pelo vício.
Seguindo, temos Wizz, outra faixa de apenas 30 segundos onde a letra são mensagens desconexas trocadas entre o vocalista e seu antigo fornecedor de drogas. Ironicamente colocada depois de uma música sobre progresso de alguém viciado, e mostra que, além dos dons musicais, a banda tem o dom da ironia e de não se levar tão a sério.
Ocupando a penúltima posição dentro do disco, temos King Snake, que reflete sobre a ideia de não ser nada e isso não ser necessariamente ruim (“Uma gota no oceano/Uma sombra na noite/Uma roda sem movimento/Um cachorro sem (latido!) mordida”). E, finalizando o álbum, The End, que é uma grande oposição de ideias, mas percebe que o ponto central da mensagem é que “apesar de tudo, a vida é bela”. A frase é cantada inúmeras vezes por Joe Talbot, fechando de maneira coesa um álbum com uma temática complexa, emocional e extremamente empática, capaz de sensibilizar qualquer pessoa que não conheça muito a banda e os integrantes pelo simples fator da identificação.
Em CRAWLER, IDLES percebe a importância de não se apegar sempre às mesmas fórmulas e que encontrar novos rumos é sempre uma ótima opção para uma banda que não deseja cair na mesmice e continuar estagnada em fazer mais do mesmo. Entretanto, talvez por terem feitos álbuns sonoramente parecidos, a tentativa de mudança existe, mas não é repentina, contendo muito do que o grupo ficou conhecido: um som pesado e uma voz potente e crua. Mas se manter fiéis ao que sempre foram e ao som que sempre fizeram não é ruim, muito menos errado.
Apesar disso, o desejo de trilhar outros caminhos é, de fato, presente e, em seu novo álbum, a banda mostra que tem um grande potencial de mudar, experimentar e evoluir. A produção de Mark Bowen e do famoso produtor Kenny Beats, somado ao talento do grupo como um todo, elevam o sarrafo para eles. Agora não tem mais volta. As letras desse álbum são de longe as mais poéticas e bem construídas de toda sua discografia, mostrando um lado de Joe Talbot que só tínhamos visto superficialmente. Seu acerto está em olhar para si mesmo e conseguir se comunicar com pessoas de diferentes partes do mundo ao retratar temas intrínsecos em nossa sociedade como ansiedade, vícios e lutas internas.
Se a banda vai seguir nesse caminho até um álbum com uma estética sonora diferente do que veio antes e subverter mais uma vez tanto o gênero pós-punk quanto as expectativas dos fãs em seu próximo álbum, eu não faço ideia. A verdade é que IDLES é um grupo versátil e talentoso, e enquanto o próximo álbum não chega, nos contentemos com o que temos: uma trajetória sonora para nos fazer querer gritar, pular, sorrir e chorar. Talvez em uma ordem diferente, talvez tudo ao mesmo tempo.