Leandror Oliveira
how i’m feeling now, como o nome sugere, é uma obra sobre o agora. Ou pelo menos, o agora de 2020. O quarto álbum de Charli XCX, lançado em maio, traz um lado mais intimista e livre da cantora em seu período isolada. Gravado em casa e sendo inteiramente produzido dentro de 6 semanas, vemos uma extensão do seu aclamado último trabalho Charli de 2019, com a adição de altas doses de experimentação e melancolia de quarentena.
Tendo a participação dos fãs durante o processo de criação, Charli abriu espaço através de salas no Zoom para que o público opinasse, sugerisse trechos nas canções e participasse ativamente da composição dos videoclipes. Com a proposta inicial de elaborar o projeto apenas com o que tinha em mãos devido ao isolamento, a cantora compila seus anseios, vivência e rotina na estética sonora e visual do disco, entregando clipes caseiros e conectados com a atmosfera para todas as faixas.
Com produção de AG Cook e BJ Burton, o trabalho resgata facetas da Charli de trabalhos como o EP Vroom Vroom e da mixtape Pop 2 e embarca na estética PC Music, já abraçada e quase característica da artista. Abrindo com pink diamond, que traz uma vibe pop de Death Grips, o registro conquista já de cara com sua energia agressiva, carregada no sintetizador e acompanhada de uma letra incisiva. “No chat por vídeo, saia fofa e sutiã/Estou me sentindo tão bem, meio que me sentindo uma puta”. Indo com tudo, como a letra diz, a faixa apresenta o disco refletindo sobre as relações sexuais a distância e auto descoberta em momentos de isolamento.
Seguida por forever, a primeira das muitas declarações de amor do disco, Charli fala com maturidade sobre o sentimento, suas fases e a imprevisibilidade das relações afetivas. Os produtores brilham na forma com que trabalham a voz da cantora e as distorções (mais presentes aqui do que em seus outros trabalhos), revelando uma das faixas mais sensíveis do disco.
Em claws, Charli entrega uma letra viciante de uma forma positiva, e logo após o primeiro play da música já é possível ficar com o “I like, I like, I like, I like, I like everything about you” na cabeça. Além disso, a forma como a voz é desenhada e tratada torna o artifício um grande destaque da faixa e realça a assinatura de Dylan Brady que traz resquícios de 100 gecs, duo do qual o produtor faz parte, para o glitch pop presente na canção.
E assim como a música anterior, 7 years retrata a relação de Charli e seu namorado, Huck Kwong, que também participa da produção de alguns dos videoclipes do how i’m feeling now. Começando a canção com os trechos “Tão difíceis, as coisas pelas quais passamos, sim/Podíamos ter desmoronado, mas apenas crescemos, sim” a artista expõe a jornada de um longo relacionamento e como o período de sete anos pode reconstituir a intimidade e dependência um do outro, soando como uma carta de amor que é escrita, amassada, aberta de novo e cantada a plenos pulmões.
“Eu não confio nem um pouco em mim mesma/Por que você deveria confiar em mim?/Eu não confio em mim mesma sozinha/Por que você deveria me amar?”. E logo após a carta declarada, vem a insegurança do amor não correspondido. Em detonate, a cantora pop expõe os fantasmas que parecem incomodar os seus sonhos e momentos sozinha, naturais de uma realidade confinada.
enemy é uma das músicas menos atraentes do CD. Apesar de sua letra interessante, a produção repetitiva que lembra trabalhos de seu passado como a emotional do álbum Number1Angel, além de possuir as distorções e trabalhos de voz menos expressivos do álbum. E na seguinte i finally understand, a faixa permeia a house beat e a Electronic Dance Music e entrega uma das melhores canções da obra. Novamente trazendo questionamentos e expondo seu trajeto de autoconhecimento, vemos a artista construir um revisitar ao passado e às novas resoluções sobre ele. Entregando lampejos de uma realidade a distância, a música comenta sobre sex-tape, rotina, namoro, terapia, choros e conselhos. A faixa é um turbilhão de informações que por si só representaria o que foi 2020.
c2.0 é uma faixa hipnotizante e a continuação direta de Click, música de seu último álbum com a participação de Kim Petras e Tommy Cash. Partindo da mesma temática da canção de 2019 (a obsessão do registro fotográfico e as relações de troca nas redes sociais), a canção entrega uma letra mais automática e robótica, e indo de encontro ao que foi a relação das pessoas com o mundo digital na era do covid-19, soa como escutar a produção em massa e de descontrolada de conteúdo na internet. A faixa é caótica, carregada e experimental na medida certa. A cada click que passa, fica clara a angústia e a vontade de voltar para os tempos da música de 2019, onde seus amigos eram parte central do ato fotográfico. “Sinto falta deles todas as noites/Eu sinto falta deles ao meu lado/Pegue minhas lágrimas quando eu chorar”.
Em party 4 u, Charli XCX entrega seu momento mais romântico da produção. Cantando sobre o que é estar isolada apenas com a pessoa que ama, a música soa pessoal, sexual, intimista e real, ela é sem dúvida a minha faixa favorita e um dos grandes momentos do projeto. A presença recolhida dos sintetizadores e o desenho loops da voz em “Party on you, party on you, party on” nos mostra uma fragilidade única do sentimento de se sentir sozinha com a pessoa que ama e, ao mesmo tempo, tentar fazer de tudo para chamar sua atenção.
“Olá/Estou tão entediada
Acordo tarde, como um pouco de cereal
Dou o meu melhor para manter o físico
Me perco em um programa de TV/Encarando o oblívio
Todos os meus amigos são invisíveis
24 horas, 7 dias da semana, sinto falta de todos”
O começo de anthems facilmente descreve a rotina de boa parte dos jovens quarentenados e isso torna fácil a identificação logo de cara. Esse é um dos pontos – mas não o único – de porque esta é a melhor música do álbum e, possivelmente, uma das primeiras a descrever os dias isolados de uma forma real e inventiva.
A produção apresenta uma canção eletrônica dançante sobre justamente estar entediada e sobre a necessidade de estar fora de casa, cantando e gritando hinos em boates sem soar imprudente. Transformando-se ironicamente em um hino de quarentena.
just birthed an album.#howimfeelingnowhttps://t.co/gC8GjUI8xz pic.twitter.com/0aTYyqJrri
— Charli (@charli_xcx) May 15, 2020
E chegando ao final, visions é a faixa mais experimental de how i’m feeling now, trazendo o aspecto dançante que permeia boa parte das músicas do disco. A canção contém a presença de batidas industriais, e o extrapolamento da PC Music carrega a bateria e encerra a obra com energia e uma incrível viagem através das visões e do mundo caótico de Charli XCX em quarentena. Assim como começou, termina, agressiva e reflexiva sobre o que está vivendo e o que ainda está por vir, encerrando-se com trechos que naturalmente exprimem o que esperar de 2021 “Você não pode tentar sentir?/Nunca vi o futuro tão real/Mas talvez eu esteja apenas fantasiando”.
how i’m feeling now é um marco, não apenas para Charlie XCX, mas também para a música pop atual. Questionando o modo de enlatar o pop mainstream com diferentes experimentações, indo da utilização de sua voz e do auto tune à batidas metálicas constantes com letras diretas e atuais. Em conjunto a uma liberdade criativa de produção maior do que a de costume para um álbum do gênero, é possível enxergar que o pouco tempo de produção do disco extrai o maior potencial dos produtores e de Charli, por este motivo entrega um genuíno retrato de um período de isolamento.
O disco possui suas irregularidades e repetições, mas ainda assim se destaca em 2020 como um dos grandes trabalhos entregues durante a quarentena, entrando para um pequeno hall de trabalhos realmente bons produzidos em meio ao isolamento e a pandemia. Ano passado não foi um ano fácil, mas se eu tive momentos de respiro mais tranquilo e claustrofóbico, Charli XCX foi definitivamente um desses motivos.